sábado, 19 de junho de 2010

O homem político em Shakespeare

O homem político em Shakespeare, de Barbara Heliodora, livro cuja primeira edição data de 1978, é fruto de tese defendida três anos antes, na USP. A autora, considerada a maior especialista brasileira no poeta elisabetano, concentra o foco de uma detalhada e bem-aparelhada análise nas duas tetralogias históricas: em ordem cronológica, a primeira, composta pelas três partes de Henry VI e Richard III e a segunda, composta por Richard II, as duas partes de Henry IV e Henry V. O trabalho propõe-se a iluminar ponto relativamente negligenciado pela tradição da infinita fortuna crítica shakesperiana, isto é, qual o pensamento político do dramaturgo, em peças também relativamente pouco estudadas. Barbara Heliodora esclarece, na "Introdução", não ter em vista o ingênuo objetivo de sair a cata da postura política do Bardo, uma vez que "poucos autores terão tido sucesso tão integral em criar, a um tempo, uma obra tão vasta e individual e uma barreira tão eficiente contra as identificações fáceis entre a obra escrita e a personalidade de quem escreveu" (p.17). A colheita ideológica a que se dedica a especialista diz respeito a como Shakespeare tematiza pensamentos, costumes, atitudes dos ingleses em geral à época, perante questões políticas, propósito a que se associa a busca do entendimento de como isso se reflete na estrutura dramática das obras.

Três teriam sido as maiores influências na formação da visão política shakespeariana, todas em afinada consonância com os interesses da dinastia Tudor, sob cujo governo o Bardo viveu: a) as homilias da Igreja anglicana; b) os textos de Plutarco; e c) o maquiavelismo, primeiro via Gentillet, de caráter negativo, com as deturpações da obra do pensador florentino ainda hoje com lugar no imaginário popular (o que se verificaria na primeira tetralogia); depois o maquiavelismo compreendido de maneira mais fiel, de caráter positivo (que caracterizaria ideologicamente a segunda tetralogia). Heliodora também assinala uma progressão a distinguir um conjunto de peças do outro: a concepção do rei como representante divino, não sujeito aos julgamentos dos homens, mas apenas de Deus, torna-se um pensamento segundo o qual o governante deve prestar contas à justiça humana, servindo os interesses da commonwealth. Com as duas teatralogias, uma escrita por um autor quase novato, a outra por um dramaturgo experiente, Shakespeare, segundo Heliodora, encena os benefícios das virtudes do monarca (firmeza de caráter, senso de justiça tanto para punir quanto para premiar os súditos) e da paz interna (entre os ingleses e seu monarca) e as catástrofes oriundas da ausência desses elementos num governo. Teríamos, quanto a isso, os exemplos extremos do fraco, fleumático Henrique VI e do egoistamente cruel Ricardo III, de um lado; do outro, Henrique V, decidido, justo, com o pensamento voltado para o bem de todo o reino.

A primeira-dama shakespeariana no Brasil chama a atenção, em certa altura do livro, para o fato de que "[...] por mais ampla e variada que seja a sua obra dramática, há denominadores comuns que ligam toda essa obra, da Comédia dos erros a A tempestade. Um desses denominadores comuns, talvez o mais significativo de todos eles, na verdade, é o interesse de William Shakespeare pela função política do homem [...]" (p.98). E, concluindo, afirma: "Ler a obra de William Shakespeare só por seu aspecto político será, sem sombra de dúvida, um tremendo empobrecimento do potencial de experiência que ela oferece; mas deixar de reconhecer que a preocupação com o homem sociopolítico é uma das constantes de sua obra [...] será também um grave empobrecimento [...]" (p.257).



Referência bibliográfica: HELIODORA, Barbara. O homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

domingo, 13 de junho de 2010

Hamlet segundo Rogério Skylab

Como a maioria das pessoas, conheci a figura e a obra de Rogério Skylab no programa do Jô Soares; no meu caso, no Jô onze e meia, quando ainda o entrevistador, humorista e escritor pertencia aos quadros do SBT. Na época, pensando na tradição da MPB, o tipo de música de Rogério me levava a compará-lo às idiossincrasias macabras de Augusto dos Anjos, em relação ao lirismo parnasiano e mesmo simbolista ainda vigentes nas duas primeiras décadas do século XX. Hoje não sei bem se a comparação tem algum sentido para mim. Não importa. Não sou propriamente um fã, mas gosto (me fazem rir bastante) de algumas músicas suas, acho seus poemas - os sonetos em versos livres e sem rima que integram o livro Debaixo das rodas de um automóvel, de 2006 - algo importante na cena literária brasileira, e penso que esse multi-artista precisava ser levado mais a sério. Nada a ver com deixar de rir de suas músicas e de seus poemas; nada a ver também com o fato de ele ser formado em Letras e Filosofia - há professores desses cursos no Brasil que não merecem senão irreverentes gargalhadas. A questão é: Rogério Skylab produz algo muito mais importante do que toda essa tranqueira pseudo-boa, artisticamente cheia de bom-mocismo tony-ramosiano, de Seu Jorge & Cia.

Vamos ao que interessa: Rogério mantém um blog, no qual postou um texto maravilhoso sobre Hamlet. Acabei de o ler e não pude deixar de divulgá-lo aqui. O link está embaixo.


quinta-feira, 10 de junho de 2010

O casamento de Romeu x Julieta

O casamento de Romeu x Julieta (2004), a que cheguei a assistir, numa curiosidade de corintiano somada à de bardólatra, no cinema, foi ontem exibido pela Rede Globo, o que me fez pensar em postar algo sobre, neste blog - um comentário breve que fosse, e será.

O filme de Bruno Barreto é uma produção despretensiosamente feliz. De início, destaco as boas atuações de Luis Gustavo e de Marco Ricca, ator este que viria, de maneira convincente, a encarnar, em 2006, o papel do protagonista de Ricardo III, com direção e tradução do texto de Jô Soares. O casamento de Romeu x Julieta não se preocupa em resgatar da atmosfera da tragédia shakespeariana muito além do mote da rivalidade entre duas famílias que dificultam a oficialização do enlace amoroso dos amantes. Na verdade, de trágico aqui não há nada. Trata-se de uma comédia mesmo, com direito a enganos risíveis no transcurso do enredo e a happy-ending selado por casamento. A brincadeira futebolística, que substitui o antagonismo itálico-medieval Montecchio-Capuletto pelo bem paulistano de nossos dias corintianos-palmeirenses, traduz a peça com o resultado eficaz de aproximá-la ao máximo de uma realidade cultural popular típica de São Paulo especificamente e do Brasil em geral. O filme, no desfecho conciliador, emite a mensagem (não poderia deixar de fazê-lo) da possibilidade e necessidade de paz entre torcidas, inclusive as arqui-inimigas - mensagem que ocupa o lugar da pedagogia shakesperiana, que ensina como a guerra entre concidadãos pode levar a fins indesejáveis à saúde sócio-política do reino; em suma, a consequências trágicas. Esse ingrediente, infelizmente, não tem faltado a nossos clássicos encenados nos estádios, com a diferença de que cabe menos aos atores que à plateia a representação da tragédia.