quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Duas atualizações fílmicas: Romeo + Juliet e Hamlet

Shakespeare, como todos sabemos, já rendeu várias adaptações no cinema. Particularmente, a década de 1990 foi bastante produtiva quanto a essa proposta. Temos o Much ado about nothing (1993), de Kenneth Branagh, Othello (1995), de Olivier Parker, o insuperável Hamlet (1996), de Kenneth Branagh, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrmann, A midnight summer's dream (1999), de Michael Hoffman, e o outro Hamlet (2000), de Michael Almereyda - além do interessente documentário-montagem de Al Pacino, Looking for Richard (1996), dentre as mais conhecidas produções fílmicas shakespearianas.

Naturalmente, as peças sofrem modificações importantes (e, por vezes, necessárias), ao serem traduzidas para o código das telas. Dos filmes acima elencados, o Romeo + Juliet de Luhrmann e o Hamlet de Almereyda foram, certamente, os mais ousados nesse quesito. Em ambos os casos, ambientam-se as tramas na atualidade. Os Montecchii e os Capuletti são gangs rivais, enfrentando-se com revólveres, perseguindo-se de carros estilosos; Hamlet envia a Claudius um fax, no qual informa seu retorno a... Nova Iorque, cidade sede da empresa Denmark Corporation. Sou da opinião de que uma atualização do cenário shakespeariano não resulta necessariamente numa heresia - Romeo + Juliet, para mim, é um filme muito bem-sucessido em sua proposta; todos os personagens, na média, são dramaticamente convincentes, dentre os quais destacaria o frei Lourenço, Tebaldo, o próprio personagem vivido por Leonardo DiCaprio e o perfeito Mercúcio de Harold Perrineau. Já não é o que acontece em Hamlet, cujo roteiro e atores, em geral, não dão conta de construir a atmosfera tensa, sombria e trágica da peça. De modo que nenhum personagem salva a película. A cena da conversa do protagonista com o fantasma do pai, por exemplo, irrita pela má-elaboração: este abraça, descabela, empurra o filho, como se a vida e a materialidade jamais o tivessem abandonado. A do cemitério é mais do que frustrante: eliminaram-se as reflexões inspiradas pela contemplação da caveira de Yorick - Hamlet e Horácio chegam ao cemitério, já Ofélia sendo enterrada - e tudo se passa com a expressividade (para lembrar a comparação de um professor de literatura do programa Vestibulando) de uma ameba em coma alcoólico. O célebre monólogo "To be or not to be" faz-se em duas partes; uma repete, em vídeo produzido pelo próprio Hamlet, amante de filmes e viciado em filmar a si e a pessoas próximas, a pergunta inicial, antecedida pelas reflexões de um monge budista (?) na televisão; a outra parte se passa numa loja Blockbuster, com o doce príncipe em meio a prateleiras da sessão de ação, uma ironia talvez forçada demais, porém - acredito - de certa felicidade, dentro de uma estrutura que busca reelaborar o conteúdo metalinguístico da peça; coerentemente, em se tratando de uma adaptação fílmica, Hamlet exibe, em sala particular, o seu filme The mousetrap. A cena em que Ofélia imagina se jogando numa piscina, de modo a prefigurar seu suicídio por afogamento, também acho bem-pensada, além de o acréscimento de conflitos algo misteriosos vividos pela personagem, mais valorizada do que acontece no original, ser interessante. Dois detalhes me chamaram bastante a atenção na película de Luhrmann: um, a porta espelhada, atrás da qual Polonius se esconde e onde é assassinado; outro, a do beijo de Hamlet na boca de Claudius, após aquele dizer a este que marido e mulher são uma mesma carne - tais detalhes parecem prestar homenagem à adaptação de Kenneth Branagh. Nada, porém, que o salve da ruindade e do não-vale-a-pena-ser-visto.

Romeo + Juliet, pelo contrário, até supera a água doce e morna que é o filme de Zeffirelli, produzido em 1968. Diga-se de passagem, definitivamente, o cineasta italiano não acertou o passo com o Bardo: seu Hamlet de 1990 está aquém até mesmo da versão soviética (1964), de Grigori Kozintsev. A cena inicial, no posto de gasolina, dá a dimensão perfeita do ódio de uma família pela outra; DiCaprio é um Romeu muito bem-construído, bem-dosado em sua melancolia, em sua exaltação de apaixonado correspondido, em sua tensão perante a iminência de acontecimentos trágicos... Se à Julieta de Claire Danes falta tempero, francamente, acho que se trata de característica do próprio personagem. Em suma, o Romeo + Juliet transcorrido na década de 1990 em Verona Beach dá a impressão de que a tragédia shakespeariana pode ocorrer em nossos dias, o que não consegue fazer o Hamlet da Nova Iorque do ano 2000 (não, o príncipe dinamarquês jamais admiraria Che Guevara... e estaria a léguas distante de ser um nietzschiano).

domingo, 24 de janeiro de 2010

Something is rotten in the state of humanity

Licínio dos Santos, em seu inquérito sobre A Loucura dos Intelectuais, entrevistou Augusto dos Anjos e à pergunta - "Quais os autores que mais o impressionaram" - obteve a seguinte resposta: "Shakespeare e Edgar Poe". O poeta paraibano, então, já havia publicado seu livro de poemas, Eu, obra personalíssima, como o próprio título sugere, dentro do panorama da poesia brasileira na época. Porém, a excentricidade de Eu é tanto menor quanto observamos os múltiplos influxos que permeiam seus versos, influxos oriundos de Charles Baudelaire, Carvalho Júnior, Antero de Quental, Cesário Verde, Cruz e Sousa - conjunto de autores no qual marcam presença a ideologia decadentista, a linguagem idiossincrática e o próprio rigor formal classicizante que caracterizam a poética de Augusto dos Anjos. Ao lado desses nomes, deve ser posto o de Shakespeare, naturalmente em razão de uma outra espécie de ressonância, mas não menos importante, senão até maior. Sim: o Bardo inglês não apenas impressionou o poeta brasileiro, conforme confessa no inquérito de Licínio dos Santos, como também o teria influenciado profundamente na concepção de seu grande livro. Poderíamos dizer mais: o Eu consiste num registro de reflexões hamletianas. Vejamos o porquê dessa afirmação.

Hamlet, após o tão célebre monólogo "To be or not to be", vem a travar um diálogo - desvairado no tom, mas muito razoável no conteúdo - com Ofélia. Nessa conversa, na qual o Príncipe procura teatralizar sua loucura, ele realiza um duro exame da condição humana, não deixando de utilizar-se a si mesmo como exemplo:


I am myself indifferent honest, but yet I could accuse me of such things that it were better my mother had not borne me. I am very proud, revengeful, ambitious, with more offences at my beck than I have thoughts to put them in, imagination to give them shape, or time to act them in.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.55.)


A inescapável baixeza moral do Homem, todavia, não terminaria com a morte; perpetuaria na degradação física, na continuidade existencial proporcionada pelo verme que devora os cadáveres. Na terceira cena do ato IV, após Hamlet matar Polônio, o Rei pergunta a Hamlet:


KING. Now, Hamlet, where's Polonnius?

HAM. At supper.

KING. At supper? Where?

HAM. Not where he eats, but where he is eaten. A certain convocation of politic worms are e'en at him. Your worm is your only emperor for diet. We fat all creatures else to fat us, and we fat ourselves for maggots. Your fat king and your lean beggar is but variable service, two dishes, but to one table. That's the end.

KING. Alas, alas!

HAM. A man many fish with the worm that hath eat of a king, and eat of the fish that hath fed of that worm.

KING. What dost thou mean by this?

HAM. Nothing but to show you how a king may go a progress through the guts of a beggar.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.82.)


Assim como, na vida, a baixeza moral iguala príncipes e cortesãs, a degradação física iguala, na morte, reis e mendigos. De fato, nem reis nem os maiores imperadores da história fugiriam a essa condição. Eis a seguir trecho da cena que se passa no cemitério, onde o protagonista da tragédia, tendo na mão a caveira de Yorick, o antigo bobo, conjectura com Horácio:


HAM. [...] Prithee, Horatio, tell me one thing.

HOR. What's that, my lord?

HAM. Dost thou think Alexander looked o' this fashion i' the earth?

HOR. E'en so.

HAM. And smelt so? Pah! [Puts down the skull.

HOR. E'en so, my lord.

HAM. To what base uses we many return, Horatio! Why, many not imagination trace the noble dust of Alexander till he find it stopping a bung-hole?

HOR. 'Twere to consider too curiously to consider so.

HAM. No, faith, not a jot; but to follow him thither with modesty enough and likelihood to lead it, as thus: Alexander died, Alexander was buried, Alexander returneth into dust, the dust is earth, of earth we make loam, and why of that loam, whereto he was converted, might they not stop a beer-barrel?
Imperious Caesar, dead and turn'd to clay,
Might stop a hole to keep the wind away.
O, that that earth, which kept the world in awe,
Should patch a wall to expel the winter's flaw!

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.106.)


Comparemos esta última passagem de Hamlet com uma estrofe do "Poema Negro" de Eu, na qual, além da situação e da idéia, a ambiência nas duas obras se assemelha:


Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.286.)


Hamlet perante a caveira de Yorick e a personificação lírica do "Poema Negro" perante os cadáveres chegam à mesma conclusão do universal "Destino" (e por ser universal, temos a inicial maiúscula) dos seres humanos. Mas também no livro de Augusto dos Anjos, a podridão material se associa à podridão moral inerente à existência humana e mesmo a toda existência. Nas duas estrofes abaixo, aponta-se na própria Natureza, acusada de torturar aqueles a que ela confere vida, uma hediondez ética:


Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam...
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam!

Tu nãs és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.287.)


No soneto "O Morcego", Augusto dos Anjos metaforiza na imagem de feiúra amedrontadora desse bicho a (também com iniciais maiúsculas) "Consciência Humana", a qual, "Por mais que a gente faça, à noite, [...] entra / Imperceptivelmente em nosso quarto!" (ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.202.) Exame interior de resultados tão abjetos quanto o de Hamlet, que corrige Polônio, quando este afirma que irá acolher os atores recém-chegados conforme o merecimento deles: "God's bodykins, man, much better. Use every man after his desert, and who shall 'scape whipping?"

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.48.)


Se a condição degradada do Homem permanece, segundo Hamlet, após a morte no verme que se alimenta dos cadáveres ou na terra que os consome, como vimos nos excertos das cenas do diálogo de Hamlet com o Rei e do diálogo de Hamlet com Horácio no cemitério, outro soneto de Eu, "Eterna Mágoa", lança mão também da imagem do verme (tão cara, aliás, a Augusto dos Anjos) para afirmar a permanência de um certo aspecto da degradação moral humana:


O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.290.)


A exegese shakespeariana já observou que Hamlet, ainda que esteja em diálogo com outros personagens várias vezes, sua reclusão em si mesmo, que o deixa à parte no mundo, não se interrompe durante a peça. O ensimesmamento do protagonista expressa-se também na recorrência e na importância dos monólogos - recorrência e importância também evidentes em Eu, cujo poema de abertura, a propósito, chama-se "Monólogo de uma Sombra", além de um outro intitulado "Solilóquio de um Visionário". O fato é que o livro como um todo apresenta um caráter monologal, manifestação do isolamento absoluto da voz poética, aspecto já adiantado no próprio título dessa obra de Augusto dos Anjos. Essa solidão tanto de Hamlet quanto da voz poética augustiana não constitui a particularidade de um caso individual, mas a universalidade da condição humana; o Homem é um ser solitário, pois como haver uma efetiva comunicação afetiva entre moralmente degenerados? Eis abaixo transcritos os quartetos do contundente e recitadíssimo soneto "Versos Íntimos":


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável.

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.280.)


Em Eu, Hamlet aparece de uma outra maneira, além dessa que venho aqui destacando. Dois poemas contêm referências explícitas ao personagem shakespeariano. Tais referências endossam a universalidade do trágico Hamlet, cuja condição existencial é de todos os homens e, naturalmente, também do enunciador do livro do poeta paraibano."Os Doentes" traz esta estrofe:


Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.241.)


E leiamos esta outra de "Tristezas de um Quarto Minguante":


Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.302.)


Essa ligação íntima do único livro organizado e publicado por Augusto dos Anjos com a colossal tragédia de William Shakespeare aproxima o Eu da obra de Machado de Assis, autor que escreveu, com efeito, shakespearianamente. O ser humano como monstro moral está em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro... na verdade, está, com maior ou menor força, em toda a narrativa do Bruxo do Cosme Velho. Por isso, o poeta paraibano e o escritor carioca se irmanam um com o outro e se isolam no cenário literário brasileiro de meados do século XIX a início do XX, quando a ressonância do Bardo inglês, em outros autores brasileiros, não se faz tão expressivamente sentir.

Esboço de estudo comparativo: Hamlet e Werther

Acredito que se pode dizer que, de certa maneira, Hamlet é um Werther avant-le-personnage. Assim como os transtornos existenciais que impelem o protagonista goethiano ao suicídio não têm como causa, mas sim apenas como eficaz catalisador a impossibilidade amorosa entre ele e Carlotta, o mal-estar no mundo de Hamlet não é provocado pelo falecimento de seu pai, nem o apressado casamento de sua mãe viúva; esses fatos simplesmente aceleram um processo de conscientização de que a vida é necessária e inescapavelmente uma miséria para a humanidade. Ao que me parece, no entanto, a proximidade entre um e outro para por aqui. Haja vista, o que significa a idéia de suicídio em Werther, cuja alma é grande demais para caber na Terra e que anseia pelo Absoluto, alcançado no gesto fatal, x em Hamlet, cônscio de sua pequenez, de sua insignificância no mundo (compartilhada por toda a espécie humana), e por isso mesmo conclui que o matar-se seria uma atitude, como qualquer uma executada pelo homem, sem a mínima importância dentro da ordem das coisas. Muito sabiamente, Shakespeare não escreve "To live, or to die", porque a verdadeira questão, bem mais profunda e complexa, é de ser ou não ser.


No que se refere especificamente ao tema amoroso, Hamlet e Werther se aproximam na mesma medida em que se distanciam. Explico o aparente paradoxo. É que o personagem shakespeariano não ama Ofélia: seus sentimentos por ela decorrem de uma postura teatral assumida desde a eclosão da consciência de que o homem é essencialmente um ser miserável; por outro lado, o personagem goethiano ama, sim, a Carlota e este amor reproduz, talvez metonimicamente, seu amor pelas crianças, pela humanidade, pela natureza, pela arte - sempre correspondido aquém de suas necessidades existenciais, donde o salto suicida rumo ao Absoluto. Assim, para Hamlet como para Werther, o amor está subordinado a suas respectivas condições e concepções de vida - ou seja - nenhum dos dois seria propriamente um romântico. Essa conclusão, se é óbvia quanto ao protagonista da peça do dramaturgo elizabetano, pode parecer uma heresia exegética quanto ao protagonista do 'romance' do escritor alemão, uma vez que este, ao escrever Die Leiden des jungen Werther é um pré-romântico (o que, na verdade, reforça a diferença entre o pré-romantismo e o romantismo, chegando quase um a ser autônomo em relação ao outro). Penso isso porque o amor não transtorna, não modifica nada do ser de Hamlet e de Werther, como podemos ver, por exemplo, no Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, cujo protagonista Simão Botelho é um arruaceiro, valentão e transforma-se completamente, ao conhecer e apaixonar-se por Teresa de Albuquerque, ou também o Tristão do drama musical de R. Wagner.