
Naturalmente, as peças sofrem modificações importantes (e, por vezes, necessárias), ao serem traduzidas para o código das telas. Dos filmes acima elencados, o Romeo + Juliet de Luhrmann e o Hamlet de Almereyda foram, certamente, os mais ousados nesse quesito. Em ambos os casos, ambientam-se as tramas na atualidade. Os Montecchii e os Capuletti são gangs rivais, enfrentando-se com revólveres, perseguindo-se de carros estilosos; Hamlet envia a Claudius um fax, no qual informa seu retorno a... Nova Iorque, cidade sede da empresa Denmark Corporation. Sou da opinião de que uma atualização do cenário shakespeariano não resulta necessariamente numa heresia - Romeo + Juliet, para mim, é um filme muito bem-sucessido em sua proposta; todos os personagens, na média, são dramaticamente convincentes, dentre os quais destacaria o frei Lourenço, Tebaldo, o próprio personagem vivido por Leonardo DiCaprio e o perfeito Mercúcio de Harold Perrineau. Já não é o que acontece em Hamlet, cujo roteiro e atores, em geral, não dão conta de construir a atmosfera tensa, sombria e trágica da peça. De modo que nenhum personagem salva a película. A cena da conversa do protagonista com o fantasma do pai, por exemplo, irrita pela má-elaboração: este abraça, descabela, empurra o filho, como se a vida e a materialidade jamais o tivessem abandonado. A do cemitério é mais do que frustrante: eliminaram-se as reflexões inspiradas pela contemplação da caveira de Yorick - Hamlet e Horácio chegam ao cemitério, já Ofélia sendo enterrada - e tudo se passa com a expressividade (para lembrar a comparação de um professor de literatura do programa Vestibulando) de uma ameba em coma alcoólico. O célebre monólogo "To be or not to be" faz-se em duas partes; uma repete, em vídeo produzido pelo próprio Hamlet, amante de filmes e viciado em filmar a si e a pessoas próximas, a pergunta inicial, antecedida pelas reflexões de um monge budista (?) na televisão; a outra parte se passa numa loja Blockbuster, com o doce príncipe em meio a prateleiras da sessão de ação, uma ironia talvez forçada demais, porém - acredito - de certa felicidade, dentro de uma estrutura que busca reelaborar o conteúdo metalinguístico da peça; coerentemente, em se tratando de uma adaptação fílmica, Hamlet exibe, em sala particular, o seu filme The mousetrap. A cena em que Ofélia imagina se jogando numa piscina, de modo a prefigurar seu suicídio por afogamento, também acho bem-pensada, além de o acréscimento de conflitos algo misteriosos vividos pela personagem, mais valorizada do que acontece no original, ser interessante. Dois detalhes me chamaram bastante a atenção na película de Luhrmann: um, a porta espelhada, atrás da qual Polonius se esconde e onde é assassinado; outro, a do beijo de Hamlet na boca de Claudius, após aquele dizer a este que marido e mulher são uma mesma carne - tais detalhes parecem prestar homenagem à adaptação de Kenneth Branagh. Nada, porém, que o salve da ruindade e do não-vale-a-pena-ser-visto.

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