sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Sobre Richard III

O drama histórico Richard III, de 1593, além de ser uma das peças mais lidas e encenadas de Shakespeare, situa-se entre as mais importantes realizações do autor em seus dez primeiros anos de atividade como dramaturgo. Tanto a popularidade quanto a qualidade dessa obra residem principalmente na força psicológica do protagonista – um dos maiores crápulas do teatro ocidental, capaz não apenas de seduzir, em condições que beiram o inverossímil a viúva Ana, mas também os próprios leitores e platéia. A perversidade e o cinismo extremos, a serviço de uma ambição doentia pelo trono inglês, que leva o duque de Gloucester, futuro Ricardo III, a assassinar ou mandar assassinar até familiares, no julgamento de alguns, a exemplo de um Harold Bloom, soam caricatos; porém, haja vista o caso, na literatura portuguesa, de um Eça de Queirós, sabemos o quanto os contornos fortes de uma caricatura têm grande eficácia. De qualquer forma, parece-nos que Shakespeare não isenta esse personagem, nem outros destacáveis na peça, de uma dimensão psicológica que os faça superar a barreira do caricaturesco.
Em linhas gerais, trata-se de uma peça sobre o conflito entre a consciência e a ambição, o conflito entre a obediência a ordens superiores e a conduta ética conforme os preceitos cristãos, donde salientar-se o sentimento de culpa e vingança em Richard III. Duas passagens, nesse sentido, se destacam: a quarta cena do primeiro ato, na qual Clarence será assassinado por dois homens a quem Gloucester pagará pelo serviço, e a terceira do quinto ato, na qual os espectros das pessoas mortas pela vontade do protagonista lhe aparecem em sonho, para atormentá-lo às vésperas da batalha contra o exército de Richmond, que, vitorioso, torna-se-á Henrique VII. Antes de assassinar Clarence, irmão do futuro Ricardo III, os dois homens entram num conflito, de cores verdadeiramente risíveis, entre a culpa de um crime a ser praticado e a alegria material da recompensa prometida. Da boca de um deles ouvimos uma muito bem-cabida definição da consciência moral, que os acomete:

“É uma coisa perigosa a consciência; deixa a gente covarde. Um indivíduo não pode roubar coisa alguma, sem que ela o acuse; não pode blasfemar, sem que ela o contenha; não pode deitar-se com a mulher do vizinho, sem que o denuncie: é um espírito tímido e envergonhado, que promove a revolta no coração da gente e levanta obstáculos a toda hora. De uma feita obrigou-me a restituir uma bolsa de ouro que eu havia encontrado. Quem lhe dá guarida vira mendigo; expulsam-na das cidades e dos burgos, como coisa perigosa; e quem quer que deseje viver bem, trata de confiar apenas em si próprio e de passar sem ela.”

(SHAKESPEARE, William. Ricardo III. In: Teatro completo: dramas históricos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. p.570.)

Numa alternância contínua entre a culpa do crime e a ambição do prêmio, que somente tem fim, após o assassinato, quando, significativamente, um dos assassinos arrepende-se do que fez e desiste da recompensa, enquanto o outro não se abala e corre entusiasmado para noticiar o feito ao duque de Gloucester. Mas o próprio assassinado, Clarence, embora clame pelas leis divinas e pela compaixão de seus algozes, ele não escapa à culpa de crimes anteriormente praticados. Em jogo de refinada ironia, o personagem, logo depois de replicar ao “O que vamos fazer é por mandado”, dito pelos assassinos, argumentando que “O grande Rei dos reis, na sua tábua / das leis expressamente vos ordena: / Não matarás”, defende-se de uma acusação, nestes termos: “Ah! por quem cometi tantas vilezas? / Por meu irmão Eduardo”. (SHAKESPEARE, William. Ricardo III. In: Teatro completo: dramas históricos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. p.570-571.) De fato, parafraseando memoráveis palavras de um professor de Sociologia da Educação da FAE/UFMG, Antônio Machado, o mais limpo em Richard III tem sarna – o que confere uma complexidade à trama, muito distante da superficialidade maniqueísta da caricatura. Ademais, na cena dos espectros, o grande vilão da peça também se verá às voltas com sua consciência – esse morcego que, por mais que façamos, entre imperceptivelmente em nosso quarto, em paráfrase ao excelente poeta paraibano do Eu –, na forma dos espectros, os quais, dentro de um propósito cênico de grande eficácia, aparecem simultaneamente para Richmond, mas para prenunciar a este sua vitória na eminente batalha contra o duque de Gloucester.

Aliás, chama muito a atenção a recorrência de premunições e profecias, o mais das vezes ocorridas em sonhos e nenhuma delas falaciosas – como será de praxe na obra shakespeariana, a exemplo de Macbeth. Logo no início de Richard III, nas palavras de Gloucester, em seu monólogo de abertura, sabemos de uma “tola profecia, / segundo a qual um G será o assassino / dos herdeiros de Eduardo”. (SHAKESPEARE, William. Ricardo III. In: Teatro completo: dramas históricos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. p.551.) Ora, os leitores da peça de imediato percebem que o G não é de George Clarence, o suspeito do rei Eduardo, mas de Gloucester, responsável pela morte das duas crianças que sucederiam no trono inglês. No último ato, quando o já Ricardo III sai de sua tenda e avista o céu, dá-se pela falta do sol, ausência que também anuncia sua derrota no confronto com Richmond – uma vez que o sol se estabelece, desde os primeiros versos da peça, como metáfora-símbolo do protagonista, com o trocadilho “sun of York”, que soa como “son of York” – Gloucester é filho (ou membro) da casa de York, que destronara em batalha tematizada em Henry VI, a casa de Lencastre. A ligação desse personagem com o sol parece-nos um tanto quanto estranha, dado seu caráter noturno – sombrio, perverso –, ainda mais por se tratar, ao fim e ao cabo, de uma peça clássica, renascentista, sob o peso, portanto, de uma simbologia positiva ligada ao sol, imagem de beleza, verdade e bem. Sabemos que Gloucester, além de falso e malévolo, ainda é deformado, numa consonância, tipicamente clássica, entre sua feiúra moral e sua feiúra física (o que efetivamente se modifica no romantismo, quando teremos um Quasímodo de Victor Hugo, personagem ultrajantemente feio, mas plenamente bondoso e ingênuo).

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