sábado, 6 de março de 2010

Shakespeare e Cervantes: breve comentário


Uma daquelas coincidências que conferem teor literário à História é o fato de que os dois maiores escritores da transição do século XVI para o XVII vieram a falecer no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Um não conheceu pessoalmente o outro; ao que tudo indica, um não leu nada do outro. Tiveram vidas muito diferentes, nasceram em reinos em guerra entre si. Mas não apenas a data da morte equipara William Shakespeare e Miguel de Cervantes: também o altíssimo posto da imortalidade e da importância cultural abriga tanto o autor de Hamlet quanto o autor de Dom Quixote. Sim, mesmo após quase 400 anos do falecimento de ambos, quando a voz dos politicamente-corretos investem todo o arsenal possível contra a validade do cânone, o devido lugar desses dois escritores não parece estar sequer ameaçado. É que a vasta galeria dos personagens shakespearianos e a célebre dupla cervantina carregam uma significância simbológica riquíssima, inesgotável, pois a criação de Ricardo III, Falstaff, Romeu e Julieta, Lady Macbeth, Otelo, Iago, Lear, Shylock, Hamlet, do Cavaleiro da Triste Figura e de Sancho Pança apreendeu a tão difícil de hoje conceber como apreensível essência humana. Todas essas são figuras arquetípicas. Se, bardolatria à parte, Harold Bloom atribui ao poeta inglês a invenção do humano, o escritor espanhol requer uma fatia nesse mérito: os protagonistas de sua obra-prima personificam o embate entre realidade e fantasia, que marca profundamente - penda mais para uma ou para outra, ou se equilibre, não importa - a psicologia de todos nós. Tal embate, para falarmos à Bloom, com certeza existia antes de Dom Quixote, mas só depois da publicação e divulgação dessa obra o mundo teve dele a nítida consciência. Em Viagens na minha terra, o romântico português Almeida Garrett chegou a fazer de Dom Quixote e Sancho Pança símbolos respectivamente do idealismo e do materialismo, dicotomia propulsora da marcha do progresso. Sabemos, aliás, o valor desta última palavra na modernidade. Modernidade também viram os românticos alemães em Shakespeare, cujas peças teatrais, sobretudo, encenariam a desobediência vitoriosa do gênio às convenções dramáticas dos clássicos. Se o teatro moderno deve muito a Shakespeare, podemos afirmar que o gênero por excelência moderno, o romance, foi gestado pela obra-prima de Cervantes. Michel Foucault vai mais longe, em As palavras e as coisas: em Dom Quixote, a palavra deixa de representar o mundo, para representar o seu próprio mundo; essa automonia referencial do texto marca, para o filósofo francês, o início da Literatura Ocidental.

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