sábado, 13 de março de 2010

O fingimento de Hamlet

Hamlet é uma daquelas obras, como o Dom Quixote, em que o caráter metalinguístico constitui elemento de grande força expressiva e estética. Quanto à obra shakespeariana, destacam-se as ocorrências em torno da companhia teatral que chega a Elsinore, onde, a pedido do príncipe dinamarquês, apresenta a peça The mousetrap. Nossa análise parte do trecho seguinte:


Speak the speech, I pray you, as I pronounced it to you, trippingly on the tongue. But if you mouth it, as many of your players do, I had as lief the town-crier spoke my lines. Nor do not saw the air too much with your hand, thus; but use all gently, for in the very torrent, tempest, and, as I may say, whirlwind of your passion, you must acquire and beget a temperance that may give it smoothness. O, it offends me to the soul to hear a robustious periwig-pated fellow tear a passion to tatters, to very rags, to split the ears of the groundlings, who, for the most part, are capable of nothing but inexplicable dumb shows and noise. I would have such a fellow whipped for o'erdoing Termagant. It out-Herods Herod. Pray you avoid it.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover, 1992. p.57)


Nesse trecho, Hamlet ensina aos atores como melhor interpretar, naturalmente em conformidade com as concepções e códigos artísticos e dramáticos da época e, particularmente, do próprio autor. É curioso que o jovem príncipe dê conselhos a um grupo teatral muito experiente e reconhecido no reino dinamarquês como dos melhores. Isso se explica pelo fato de que Hamlet tem o pleno domínio da representação, uma vez que ele é pura e simplesmente o ator de si mesmo, donde a ausência existencial patente do que suas palavras e gestos em público revelam falsamente de sua personalidade e estado emocional. Em plano mais epidérmico, o personagem representa o papel do louco, levando uns (como a rainha Gertrude, sua mãe) a acreditarem ser pela morte recente do pai e pelo casamento apressado dela com o irmão do falecido rei; levando outros (como Polonius) a pensar que pela interdição dos encontros amorosos entre o príncipe e sua filha Ofélia. Mas tanto a loucura-consequência quanto o luto-e/ou-amor-causas-supostas resultam da artimanha dramática de Hamlet, que, na realidade, nem ama Ofélia, tampouco se entristece com o falecimento do pai. Suas rebarbativas palavras, na quarta cena do ato IV, quando jura que "from this time forth,/ My thoughts be bloody, or be nothinh worth", e na primeira cena do ato V, em duelo com Laertes na demonstração do mais elevado amor e tristeza pela Ofélia então morta, quase seriam definidas por Gertrude com justeza: "This is mere madness". Não, é que a própria loucura de seu filho é fingimento de um ator que faz papel de si mesmo: seus "pensamentos sangrentos" jamais são executados, nem sequer pensados depois; e a força expressiva do excerto abaixo, dito a Laertes, no cemitério, à ocasião do enterro de Ofélia,


'Swounds, show me what thou'lt do.
Woo't weep, woo't fight, woo't fast, woo't tear thyself,
Woo't drink up eisel, eat a crocodile?
I'll do't. Dost thou come here to whine,
To outface me with leaping in her grave?
Be buried quick with her, and so will I.
And, if thou prate of mountains, let them throw
Millions of acres on us, till our ground,
Singeing his pate against the burning zone,
Make Ossa like a wart! Nay, an thou'lt mouth,
I'll rant as well as thou.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover, 1992. p.108-109)


não passa de exímio exercício retórico de quem quer convencer os interlocutores e presentes de sentimentos fictícios. O que confirmaria tais observações? Ofélia e Laertes experienciam o mesmo que Hamlet: a morte do pai. Mas se esse fato é apenas uma causa suposta da loucura fingida do protagonista, para Ofélia é razão verdadeira para sua real loucura. Também se Hamlet, frente à certeza - alcançada pelo estratagema da peça para o rei Claudius, de que este lhe assassinara o pai - não basta para a manifestação pública de nenhum gesto vingantivo até o fim da obra, Laertes, ao saber que Polonius tinha sido assassinado, sem a mínima certeza da autoria de seu assassinato, invade o castelo real e com decidida violência ameaça a vida do rei com uma espada. Parece-me mesmo expressivo que Laertes incita, nesse momento, a populaça a proclamá-lo rei, sucessão que caberia legitimamente a Hamlet, assim como o fato de que este pensa no suicídio desde o início da peça, mas nunca o comete, ao passo que Ofélia vem a se matar, sem hesitações. De modo que os filhos de Polonius funcionam como contrapontos psíquicos do príncipe dinamarquês. Mas, diga-se de passagem, também o é o norueguês, Fortimbras, também príncipe de um reino cujo monarca é seu tio: mas ao contrário de Hamlet, que no máximo enfrenta Claudius com apenas palavras cortantes, Fortimbras desrespeita a vontade do tio e invade a Dinamarca, vindo a conquistá-la. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche assim entende o mais complexo personagem de Shakespeare, com base em que procura explicar sua idéia de 'homem dionisíaco':


[...] o homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enojar atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que se lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado. O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão - tal é o ensinamento de Hamlet [...]; [...] é o verdadeiro conhecimento, o relance interior na horrenda verdade, que sobrepesa todo e qualquer motivo que possa impelir à atuação, quer em Hamlet quer no homem dionisíaco.

(NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.56)


Nietzsche, nessa que é uma das mais argutas captações da mente hamletiana, nos fornece a chave para compreender o que motivaria o personagem a, sistematicamente, se abster de agir, em nome do representar, no sentido de fingimento dramático. Na verdade, essa "essência das coisas", à qual o protagonista shakespeariano lança "um verdadeiro olhar", parece-me dizer respeito especificamente à moral. Sim, Hamlet é um moralista. Sua concepção moral, de nítidos contornos cristãos, entretanto, nada tem a ver com o catolicismo, mas muito (coincidentemente apenas?) com o luteranismo, na medida em que as ações necessariamente conduzem o homem ao pecado, jamais à vida santa; donde a réplica do personagem a Polonius, que informa sua disposição a acolher os atores recém-chegados ao castelo tal como eles merecem: "God’s bodykins, man, much better. Use every man after his desert, and who shall 'scape whipping?"


Se os atos mais nobres e filantrópicos constituem a ocultação de propósitos mesquinhos e egoístas (não à toa Machado de Assis, outro moralista a essa maneira, admirava tanto a obra-prima shakespeariana), a solução encontrada nem pode ser a via proposta por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, isto é, a postura ascética (pelo quê, o escritor brasileiro distancia-se do filósofo que igualmente tanto apreciou): o fingir. Cumpre esclarecer que o fingimento hamletiano não é o mesmo da hipocrisia social, pois se trata de uma representação que nada mascara: tirada a máscara, nada encontraríamos por trás. Quando finalmente mata Claudius, Hamlet está envenenado e ciente de que morrerá em breve. De qualquer forma, há algo de incógnito nessa sua última (e talvez única) atitude: espírito vingantivo acumulado, referente à morte do pai, da mãe e de si mesmo? Apenas de seus genitores? Somente de si mesmo? Pessoalmente, acredito ser sua própria iminente morte que o impele o assassinato do rei fraticida.

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