sexta-feira, 26 de março de 2010

Álvares de Azevedo: um shakespeariano

Em artigo publicado na Semana Literária, a 12 de março de 1864, Machado de Assis tece considerações sobre a obra de Álvares de Azevedo, cerca de uma década após a morte desse poeta. Em certa passagem, diz o futuro romancista de Memórias póstumas de Brás Cubas:

"Cita-se sempre, a propósito do autor de Lira dos vinte anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma freqüente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horácio, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de uma página de versos. Amava Shakespeare [...]." (ASSIS in: AZEVEDO, 2000, p.25)

Mais do que nenhum outro nome do período romântico brasileiro, Álvares de Azevedo amou, de fato, a obra shakespeariana. Além de versos inspirados na referida cena de Hamlet, como o início do poema "Glória moribunda", no qual lemos

"É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos louros.
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto;
Nessas órbitas - ocas, denegridas! -
Como era puro seu olhar sombrio!"
(AZEVEDO, 2000, p.293)

encontramos várias epígrafes extraídas das peças do Bardo inglês em Lira dos vinte anos, Poema do frade, O conde Lopo, Noite na taverna e O livro de fra. Gondicário. No prefácio de Macário, ao tentar esclarecer seu confuso ideal dramático, Azevedo não perde de vista a participação da "força das paixões ardentes de Shakespeare", e aproveita o ensejo para criticar a "tradução bastarda" de Ducis, "verdadeira castração do Othelo", bem como a de Vigny (AZEVEDO, 2000, p.507). O poeta paulista deve ter ficado bastante irritado com o resultado da empreitada desses dois franceses, pois, na "Carta sobre a atualidade do teatro entre nós", encontra ensejo para mais uma alfinetada. Aliás, em tal texto, ao argumentar em favor do gênero cômico, desvalorizado no Brasil, frente a gêneros 'sérios', como a tragédia, Shakespeare também aparece como exemplo (em assertivas um tanto quanto questionáveis, senão indefensáveis, a meu ver):

"Shakespeare preferia a galhofa das Alegres mulheres de Windsor - What you will, A tempestade, etc, aos monólogos de Henrique III [sic], ao desespero do Rei Lear, à dúvida de Hamlet." (AZEVEDO, 2000, p.746)

Álvares de Azevedo herda a admiração de um Lessing e dos pré-românticos alemães (Herder, Goethe, Schiller) pela obra shakespeariana, tomada como comprovação de que o gênio está acima de convenções dramáticas impostas pela autoridade do teatro clássico francês. Se já enxergaram na ironia machadiana uma continuidade da ironia azevediana, deve-se também observar que Machado de Assis também compartilhou do mesmo amor devotado ao poeta elizabetano. Dom Casmurro será compreendido por Helen Caldweel como "o Otelo brasileiro", em seu clássico estudo. Curiosamente, há notícia de que Azevedo escrevera uma espécie de imitação do último ato dessa mesma peça - texto infelizmente perdido. Por outro lado, cumpre dizer que Azevedo não revela, em sua obra tanto literária quanto ensaística, interesse e entendimento sobre Shakespeare que ultrapasse a sedução pelo que há de mais passional - caso do ciúme do Mouro veneziano, do amor entre Romeu e Julieta - e mórbido - caso da visão da caveira de Yorick - o que o romantismo do autor apenas explica, mas não desculpa. A profundidade poética e filosófica shakespeariana apenas viria a reconhecê-la, pela primeira vez no Brasil, o romancista carioca.

Referência bibliográfica: AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

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