
Vigotski, na verdade, não era um bardólatra, mas um hamletólatra. Escreveu essa monografia sobre a obra-prima shakespeariana e ainda projetava um outro volume, no qual analisaria a recepção crítica e importantes montagens da peça - o que, infelizmente, não se realizou, devido à ocupação com a pesquisa que lhe daria maior notoriedade e à parcimônia de tempo que a vida lhe reservou, tendo falecido aos trinta e oito anos incompletos, em 1934.
No prefácio à edição brasileira, Paulo Bezerra o considera "um crítico muito original", que refletiu sobre "questões que a crítica só iria abordar bem mais tarde". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.ix) Vigotski, em A tragédia de Hamlet..., pauta-se por concepção de leitura que rechaça a necessidade tanto de contextualizações históricas e biográficas quanto de revisões de estudos já produzidos, num entendimento de que "todas as interpretações são admissíveis e o crítico pode construir sua interpretação sem se preocupar com rejeitar as interpretações anteriores". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.x-xi) Tal concepção o autor bielo-russo denominou "crítica de leitor".
Seu livro se estrutura em dez capítulos, antecedidos por um prefácio e incrementados com diversas notas, cujo maior interesse, a meu ver, reside nas informações fornecidas sobre a recepção de Shakespeare e, particularmente, de sua tragédia analisada, na Rússia. Vigotski parte do pressuposto de que jamais decifraremos plenamente essa peça, cuja parcela inteligível - o enredo, a fábula - se representa pela expressão desdenhosa, dita pelo próprio protagonista, "words, words, words", e cuja parcela insondável se representa pela expressão com que também o príncipe dinamarquês se despede deste mundo: "the rest is silence". De um lado, a face diurna, terrena, natural, racional da obra; de outro, sua face noturna, além-tumular, sobrenatural, insana - às quais correspondem dois planos, um marcado pelas constantes narrações feitas pelos personagens em geral, o outro pelos vários monólogos de Hamlet. A propósito, Vigotski chama a atenção para o fato de que, nessa peça, praticamente inexiste ação, a qual se concentra em seu desfecho. Além de o protagonista não agir, conforme sempre pontua a exegese shakespeariana, todos os acontecimentos ou ocorreram antes do início do drama (o assassinato do rei, o casamento de Claudius e Gertrude...) ou ocorrem fora do palco (a morte de Ophelia, a luta de Hamlet com os piratas...), do que ficamos sabendo porque o narram os personagens. Paradoxalmente, embora não haja ação, ou por isso mesmo, Hamlet seria a "tragédia das tragédias", pois nela "há tudo o que na tragédia constitui a tragédia; o próprio princípio trágico, a própria essência da tragédia, sua idéia, seu tom; o que transforma o drama comum em tragédia; o que é comum a todas as tragédias; aquele abismo trágico e aquelas leis do trágico sobre as quais se estruturam todas as tragédias". (VIGOTSKI, 1999, p.3)
Segundo a análise vigotskiana, Hamlet passa por um processo de transformação psicológica (e existencial) a partir da morte de seu pai; transformação que se completa, quando o filho encontra-se com o fantasma, e pode ser entendida como um segundo nascimento ou divórcio da razão, da vida e do mundo. Todas as coisas vislumbradas pelo príncipe passam a se referir a algo que está além e é incompreensível, donde sua inércia, sua falta de vontade. Em suma: a alma do personagem, rapta-a e conduz um automatismo trágico de grande força magnética, capaz de atrair os demais que se destacam na peça para um fim igualmente trágico, a exemplo do que acontece com Ophelia, Guildenstern e Rosencrantz (aliás, todos os personagens importantes morrem, exceto Horatio, que, somente a súplicas de Hamlet, não se suicida).
O que engatilha os eventos trágicos dessa obra shakespeariana, para o autor bielo-russo, é tanto uma frágil vitória do rei Hamlet contra o rei norueguês, o pai de Fortinbras, quanto o assassinato daquele pelas mãos de seu próprio irmão, Claudius. Haveria, portanto, um cruzamento e uma interdependência, no desenvolvimento da tragédia, de dois planos: o familiar e o político. Com efeito, Vigotski destaca como Shakespeare não se esquece, no título da peça, de pospor ao nome do personagem sua condição política: "príncipe da Dinamarca". Todavia, o espectador apenas tem acesso direto aos eventos familiares; os políticos - a campanha do príncipe norueguês contra o reino dinamarquês, com o objetivo de reaver a coroa à que teria direito na sucessão - dão-se todos fora de cena e só, quando Hamlet, sua mãe, seu tio, Laertes estão mortos, se revelam aos olhos do público, com a tomada do castelo por Fortinbras e seu exército. A tragédia, desse modo, é também a dissolução de uma dinastia e a ocupação por uma outra do trono da Dinamarca.
Em vez de ter um efeito catártico, como se sucede nas tragédias clássicas, Hamlet, em seu desfecho, segundo Vigotski, transtorna o espectador, sem nada expurgar. Aliás, não haveria propriamente um fim: há um "resto" que o protagonista não revela, levando-o consigo ao túmulo. O que Horatio poderia relatar não passaria de "palavras, palavras, palavras". Na verdade, se pudéssemos compreender esse resto, suportaríamos ouvi-lo? Não dissera o fantasma a Hamlet que a narrativa do que passava, na condição de morto cheio de pecados, poderia lhe fazer saltarem os olhos, como estrelas, de suas órbitas? Vigotski compara o espectador da peça a Claudius: este não consegue assistir até ao fim a A ratoeira, ou a morte de Gonzago. "[...] nós todos, nascidos e cúmplices da tragédia, ao contemplá-la vemos reproduzida em cena nossa culpa, a culpa de havermos nascido, a culpa de existirmos, e nos familiarizarmos com a dor da tragédia". (VIGOTSKI, 1999, p.185) E, assim, talvez sejamos acometidos pela vontade, como Horatio, de tomarmos também o veneno que ainda sobra na taça.
A análise desenvolvida em A tragédia de Hamlet... é muito pormenorizada, buscando interpretar diversos detalhes da peça, as relações do protagonista com os personagens mais importantes, o significado do fantasma... Minha resenha se atém a levantar pontos principais dessa monografia, que supera de longe, em argúcia, equilíbrio e fundamentação interpretativa, as páginas do também fundamental Hamlet, poema ilimitado, de Harold Bloom.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: VIGOTSKI, L.S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Muito massa! Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado!! pelo elogio, pela visita e pela leitura do texto.
ResponderExcluirAbraço!