sábado, 20 de março de 2010

Hamlet segundo Vigotski

Quem cometeu a atrocidade contra si mesmo de escolher graduar-se, com intuitos profissionais, em alguma licenciatura certamente terá lido (ou, pelo menos, ouvido falar de) Lev S. Vigotski - nome tão citado nas faculdades de educação quanto o de Jean Piaget. Mas pergunto: quem teria conhecimento, nos cursos de Letras do País, dentre professores e alunos, do fato de que o eminente psicólogo bielo-russo escreveu uma das obras fundamentais da crítica shakespeariana: A tragédia de Hamlet, príncipe de Dinamarca? Em matéria de hermenêutica literária, o volume consta como das melhores coisas que já li na minha vida - graças à louvável iniciativa da Martins Fontes, com a colaboração de um dos maiores tradutores brasileiros, Paulo Bezerra, de disponibilizar, em 1999, seu acesso ao público do Brasil.

Vigotski, na verdade, não era um bardólatra, mas um hamletólatra. Escreveu essa monografia sobre a obra-prima shakespeariana e ainda projetava um outro volume, no qual analisaria a recepção crítica e importantes montagens da peça - o que, infelizmente, não se realizou, devido à ocupação com a pesquisa que lhe daria maior notoriedade e à parcimônia de tempo que a vida lhe reservou, tendo falecido aos trinta e oito anos incompletos, em 1934.

No prefácio à edição brasileira, Paulo Bezerra o considera "um crítico muito original", que refletiu sobre "questões que a crítica só iria abordar bem mais tarde". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.ix) Vigotski, em A tragédia de Hamlet..., pauta-se por concepção de leitura que rechaça a necessidade tanto de contextualizações históricas e biográficas quanto de revisões de estudos já produzidos, num entendimento de que "todas as interpretações são admissíveis e o crítico pode construir sua interpretação sem se preocupar com rejeitar as interpretações anteriores". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.x-xi) Tal concepção o autor bielo-russo denominou "crítica de leitor".

Seu livro se estrutura em dez capítulos, antecedidos por um prefácio e incrementados com diversas notas, cujo maior interesse, a meu ver, reside nas informações fornecidas sobre a recepção de Shakespeare e, particularmente, de sua tragédia analisada, na Rússia. Vigotski parte do pressuposto de que jamais decifraremos plenamente essa peça, cuja parcela inteligível - o enredo, a fábula - se representa pela expressão desdenhosa, dita pelo próprio protagonista, "words, words, words", e cuja parcela insondável se representa pela expressão com que também o príncipe dinamarquês se despede deste mundo: "the rest is silence". De um lado, a face diurna, terrena, natural, racional da obra; de outro, sua face noturna, além-tumular, sobrenatural, insana - às quais correspondem dois planos, um marcado pelas constantes narrações feitas pelos personagens em geral, o outro pelos vários monólogos de Hamlet. A propósito, Vigotski chama a atenção para o fato de que, nessa peça, praticamente inexiste ação, a qual se concentra em seu desfecho. Além de o protagonista não agir, conforme sempre pontua a exegese shakespeariana, todos os acontecimentos ou ocorreram antes do início do drama (o assassinato do rei, o casamento de Claudius e Gertrude...) ou ocorrem fora do palco (a morte de Ophelia, a luta de Hamlet com os piratas...), do que ficamos sabendo porque o narram os personagens. Paradoxalmente, embora não haja ação, ou por isso mesmo, Hamlet seria a "tragédia das tragédias", pois nela "há tudo o que na tragédia constitui a tragédia; o próprio princípio trágico, a própria essência da tragédia, sua idéia, seu tom; o que transforma o drama comum em tragédia; o que é comum a todas as tragédias; aquele abismo trágico e aquelas leis do trágico sobre as quais se estruturam todas as tragédias". (VIGOTSKI, 1999, p.3)

Segundo a análise vigotskiana, Hamlet passa por um processo de transformação psicológica (e existencial) a partir da morte de seu pai; transformação que se completa, quando o filho encontra-se com o fantasma, e pode ser entendida como um segundo nascimento ou divórcio da razão, da vida e do mundo. Todas as coisas vislumbradas pelo príncipe passam a se referir a algo que está além e é incompreensível, donde sua inércia, sua falta de vontade. Em suma: a alma do personagem, rapta-a e conduz um automatismo trágico de grande força magnética, capaz de atrair os demais que se destacam na peça para um fim igualmente trágico, a exemplo do que acontece com Ophelia, Guildenstern e Rosencrantz (aliás, todos os personagens importantes morrem, exceto Horatio, que, somente a súplicas de Hamlet, não se suicida).

O que engatilha os eventos trágicos dessa obra shakespeariana, para o autor bielo-russo, é tanto uma frágil vitória do rei Hamlet contra o rei norueguês, o pai de Fortinbras, quanto o assassinato daquele pelas mãos de seu próprio irmão, Claudius. Haveria, portanto, um cruzamento e uma interdependência, no desenvolvimento da tragédia, de dois planos: o familiar e o político. Com efeito, Vigotski destaca como Shakespeare não se esquece, no título da peça, de pospor ao nome do personagem sua condição política: "príncipe da Dinamarca". Todavia, o espectador apenas tem acesso direto aos eventos familiares; os políticos - a campanha do príncipe norueguês contra o reino dinamarquês, com o objetivo de reaver a coroa à que teria direito na sucessão - dão-se todos fora de cena e só, quando Hamlet, sua mãe, seu tio, Laertes estão mortos, se revelam aos olhos do público, com a tomada do castelo por Fortinbras e seu exército. A tragédia, desse modo, é também a dissolução de uma dinastia e a ocupação por uma outra do trono da Dinamarca.

Em vez de ter um efeito catártico, como se sucede nas tragédias clássicas, Hamlet, em seu desfecho, segundo Vigotski, transtorna o espectador, sem nada expurgar. Aliás, não haveria propriamente um fim: há um "resto" que o protagonista não revela, levando-o consigo ao túmulo. O que Horatio poderia relatar não passaria de "palavras, palavras, palavras". Na verdade, se pudéssemos compreender esse resto, suportaríamos ouvi-lo? Não dissera o fantasma a Hamlet que a narrativa do que passava, na condição de morto cheio de pecados, poderia lhe fazer saltarem os olhos, como estrelas, de suas órbitas? Vigotski compara o espectador da peça a Claudius: este não consegue assistir até ao fim a A ratoeira, ou a morte de Gonzago. "[...] nós todos, nascidos e cúmplices da tragédia, ao contemplá-la vemos reproduzida em cena nossa culpa, a culpa de havermos nascido, a culpa de existirmos, e nos familiarizarmos com a dor da tragédia". (VIGOTSKI, 1999, p.185) E, assim, talvez sejamos acometidos pela vontade, como Horatio, de tomarmos também o veneno que ainda sobra na taça.

A análise desenvolvida em A tragédia de Hamlet... é muito pormenorizada, buscando interpretar diversos detalhes da peça, as relações do protagonista com os personagens mais importantes, o significado do fantasma... Minha resenha se atém a levantar pontos principais dessa monografia, que supera de longe, em argúcia, equilíbrio e fundamentação interpretativa, as páginas do também fundamental Hamlet, poema ilimitado, de Harold Bloom.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: VIGOTSKI, L.S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

2 comentários: