sexta-feira, 26 de março de 2010

Álvares de Azevedo: um shakespeariano

Em artigo publicado na Semana Literária, a 12 de março de 1864, Machado de Assis tece considerações sobre a obra de Álvares de Azevedo, cerca de uma década após a morte desse poeta. Em certa passagem, diz o futuro romancista de Memórias póstumas de Brás Cubas:

"Cita-se sempre, a propósito do autor de Lira dos vinte anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma freqüente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horácio, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de uma página de versos. Amava Shakespeare [...]." (ASSIS in: AZEVEDO, 2000, p.25)

Mais do que nenhum outro nome do período romântico brasileiro, Álvares de Azevedo amou, de fato, a obra shakespeariana. Além de versos inspirados na referida cena de Hamlet, como o início do poema "Glória moribunda", no qual lemos

"É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos louros.
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto;
Nessas órbitas - ocas, denegridas! -
Como era puro seu olhar sombrio!"
(AZEVEDO, 2000, p.293)

encontramos várias epígrafes extraídas das peças do Bardo inglês em Lira dos vinte anos, Poema do frade, O conde Lopo, Noite na taverna e O livro de fra. Gondicário. No prefácio de Macário, ao tentar esclarecer seu confuso ideal dramático, Azevedo não perde de vista a participação da "força das paixões ardentes de Shakespeare", e aproveita o ensejo para criticar a "tradução bastarda" de Ducis, "verdadeira castração do Othelo", bem como a de Vigny (AZEVEDO, 2000, p.507). O poeta paulista deve ter ficado bastante irritado com o resultado da empreitada desses dois franceses, pois, na "Carta sobre a atualidade do teatro entre nós", encontra ensejo para mais uma alfinetada. Aliás, em tal texto, ao argumentar em favor do gênero cômico, desvalorizado no Brasil, frente a gêneros 'sérios', como a tragédia, Shakespeare também aparece como exemplo (em assertivas um tanto quanto questionáveis, senão indefensáveis, a meu ver):

"Shakespeare preferia a galhofa das Alegres mulheres de Windsor - What you will, A tempestade, etc, aos monólogos de Henrique III [sic], ao desespero do Rei Lear, à dúvida de Hamlet." (AZEVEDO, 2000, p.746)

Álvares de Azevedo herda a admiração de um Lessing e dos pré-românticos alemães (Herder, Goethe, Schiller) pela obra shakespeariana, tomada como comprovação de que o gênio está acima de convenções dramáticas impostas pela autoridade do teatro clássico francês. Se já enxergaram na ironia machadiana uma continuidade da ironia azevediana, deve-se também observar que Machado de Assis também compartilhou do mesmo amor devotado ao poeta elizabetano. Dom Casmurro será compreendido por Helen Caldweel como "o Otelo brasileiro", em seu clássico estudo. Curiosamente, há notícia de que Azevedo escrevera uma espécie de imitação do último ato dessa mesma peça - texto infelizmente perdido. Por outro lado, cumpre dizer que Azevedo não revela, em sua obra tanto literária quanto ensaística, interesse e entendimento sobre Shakespeare que ultrapasse a sedução pelo que há de mais passional - caso do ciúme do Mouro veneziano, do amor entre Romeu e Julieta - e mórbido - caso da visão da caveira de Yorick - o que o romantismo do autor apenas explica, mas não desculpa. A profundidade poética e filosófica shakespeariana apenas viria a reconhecê-la, pela primeira vez no Brasil, o romancista carioca.

Referência bibliográfica: AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

sábado, 20 de março de 2010

Hamlet segundo Vigotski

Quem cometeu a atrocidade contra si mesmo de escolher graduar-se, com intuitos profissionais, em alguma licenciatura certamente terá lido (ou, pelo menos, ouvido falar de) Lev S. Vigotski - nome tão citado nas faculdades de educação quanto o de Jean Piaget. Mas pergunto: quem teria conhecimento, nos cursos de Letras do País, dentre professores e alunos, do fato de que o eminente psicólogo bielo-russo escreveu uma das obras fundamentais da crítica shakespeariana: A tragédia de Hamlet, príncipe de Dinamarca? Em matéria de hermenêutica literária, o volume consta como das melhores coisas que já li na minha vida - graças à louvável iniciativa da Martins Fontes, com a colaboração de um dos maiores tradutores brasileiros, Paulo Bezerra, de disponibilizar, em 1999, seu acesso ao público do Brasil.

Vigotski, na verdade, não era um bardólatra, mas um hamletólatra. Escreveu essa monografia sobre a obra-prima shakespeariana e ainda projetava um outro volume, no qual analisaria a recepção crítica e importantes montagens da peça - o que, infelizmente, não se realizou, devido à ocupação com a pesquisa que lhe daria maior notoriedade e à parcimônia de tempo que a vida lhe reservou, tendo falecido aos trinta e oito anos incompletos, em 1934.

No prefácio à edição brasileira, Paulo Bezerra o considera "um crítico muito original", que refletiu sobre "questões que a crítica só iria abordar bem mais tarde". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.ix) Vigotski, em A tragédia de Hamlet..., pauta-se por concepção de leitura que rechaça a necessidade tanto de contextualizações históricas e biográficas quanto de revisões de estudos já produzidos, num entendimento de que "todas as interpretações são admissíveis e o crítico pode construir sua interpretação sem se preocupar com rejeitar as interpretações anteriores". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.x-xi) Tal concepção o autor bielo-russo denominou "crítica de leitor".

Seu livro se estrutura em dez capítulos, antecedidos por um prefácio e incrementados com diversas notas, cujo maior interesse, a meu ver, reside nas informações fornecidas sobre a recepção de Shakespeare e, particularmente, de sua tragédia analisada, na Rússia. Vigotski parte do pressuposto de que jamais decifraremos plenamente essa peça, cuja parcela inteligível - o enredo, a fábula - se representa pela expressão desdenhosa, dita pelo próprio protagonista, "words, words, words", e cuja parcela insondável se representa pela expressão com que também o príncipe dinamarquês se despede deste mundo: "the rest is silence". De um lado, a face diurna, terrena, natural, racional da obra; de outro, sua face noturna, além-tumular, sobrenatural, insana - às quais correspondem dois planos, um marcado pelas constantes narrações feitas pelos personagens em geral, o outro pelos vários monólogos de Hamlet. A propósito, Vigotski chama a atenção para o fato de que, nessa peça, praticamente inexiste ação, a qual se concentra em seu desfecho. Além de o protagonista não agir, conforme sempre pontua a exegese shakespeariana, todos os acontecimentos ou ocorreram antes do início do drama (o assassinato do rei, o casamento de Claudius e Gertrude...) ou ocorrem fora do palco (a morte de Ophelia, a luta de Hamlet com os piratas...), do que ficamos sabendo porque o narram os personagens. Paradoxalmente, embora não haja ação, ou por isso mesmo, Hamlet seria a "tragédia das tragédias", pois nela "há tudo o que na tragédia constitui a tragédia; o próprio princípio trágico, a própria essência da tragédia, sua idéia, seu tom; o que transforma o drama comum em tragédia; o que é comum a todas as tragédias; aquele abismo trágico e aquelas leis do trágico sobre as quais se estruturam todas as tragédias". (VIGOTSKI, 1999, p.3)

Segundo a análise vigotskiana, Hamlet passa por um processo de transformação psicológica (e existencial) a partir da morte de seu pai; transformação que se completa, quando o filho encontra-se com o fantasma, e pode ser entendida como um segundo nascimento ou divórcio da razão, da vida e do mundo. Todas as coisas vislumbradas pelo príncipe passam a se referir a algo que está além e é incompreensível, donde sua inércia, sua falta de vontade. Em suma: a alma do personagem, rapta-a e conduz um automatismo trágico de grande força magnética, capaz de atrair os demais que se destacam na peça para um fim igualmente trágico, a exemplo do que acontece com Ophelia, Guildenstern e Rosencrantz (aliás, todos os personagens importantes morrem, exceto Horatio, que, somente a súplicas de Hamlet, não se suicida).

O que engatilha os eventos trágicos dessa obra shakespeariana, para o autor bielo-russo, é tanto uma frágil vitória do rei Hamlet contra o rei norueguês, o pai de Fortinbras, quanto o assassinato daquele pelas mãos de seu próprio irmão, Claudius. Haveria, portanto, um cruzamento e uma interdependência, no desenvolvimento da tragédia, de dois planos: o familiar e o político. Com efeito, Vigotski destaca como Shakespeare não se esquece, no título da peça, de pospor ao nome do personagem sua condição política: "príncipe da Dinamarca". Todavia, o espectador apenas tem acesso direto aos eventos familiares; os políticos - a campanha do príncipe norueguês contra o reino dinamarquês, com o objetivo de reaver a coroa à que teria direito na sucessão - dão-se todos fora de cena e só, quando Hamlet, sua mãe, seu tio, Laertes estão mortos, se revelam aos olhos do público, com a tomada do castelo por Fortinbras e seu exército. A tragédia, desse modo, é também a dissolução de uma dinastia e a ocupação por uma outra do trono da Dinamarca.

Em vez de ter um efeito catártico, como se sucede nas tragédias clássicas, Hamlet, em seu desfecho, segundo Vigotski, transtorna o espectador, sem nada expurgar. Aliás, não haveria propriamente um fim: há um "resto" que o protagonista não revela, levando-o consigo ao túmulo. O que Horatio poderia relatar não passaria de "palavras, palavras, palavras". Na verdade, se pudéssemos compreender esse resto, suportaríamos ouvi-lo? Não dissera o fantasma a Hamlet que a narrativa do que passava, na condição de morto cheio de pecados, poderia lhe fazer saltarem os olhos, como estrelas, de suas órbitas? Vigotski compara o espectador da peça a Claudius: este não consegue assistir até ao fim a A ratoeira, ou a morte de Gonzago. "[...] nós todos, nascidos e cúmplices da tragédia, ao contemplá-la vemos reproduzida em cena nossa culpa, a culpa de havermos nascido, a culpa de existirmos, e nos familiarizarmos com a dor da tragédia". (VIGOTSKI, 1999, p.185) E, assim, talvez sejamos acometidos pela vontade, como Horatio, de tomarmos também o veneno que ainda sobra na taça.

A análise desenvolvida em A tragédia de Hamlet... é muito pormenorizada, buscando interpretar diversos detalhes da peça, as relações do protagonista com os personagens mais importantes, o significado do fantasma... Minha resenha se atém a levantar pontos principais dessa monografia, que supera de longe, em argúcia, equilíbrio e fundamentação interpretativa, as páginas do também fundamental Hamlet, poema ilimitado, de Harold Bloom.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: VIGOTSKI, L.S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Sobre The comedy of errors

Barbara Heliodora, em sua introdução à edição da peça que ela mesma traduziu, informa que "A comédia dos erros é possivelmente a primeira peça de Shakespeare" e a "data da composição é incerta, com sugestões que variam de um extremo e improvável 1584 até 1592, e o primeiro registro de encenação é o do espetáculo realizado a 28 de dezembro de 1594, como parte dos festejos natalinos dos estudantes de Direito em Gray's Inn, em Londres". (HELIODORA in: SHAKESPEARE, 1999, p.5) Ainda segundo a eminente especialista brasileira na obra do Bardo, o autor, para compor sua comédia, aproveitou elementos de duas comédias de Plauto - Menaechmi e Amphiruo -, além de realizar importantes diálogos intertextuais com passagens bíblicas, a Epístola de São Paulo aos Efésios e os Atos dos Apóstolos - tudo isso, como aconteceria geralmente na gestão dramatúrgica do poeta elisabetano, resultando numa obra bem distinta e mais sofisticada do que os textos-fonte.

A ação transcorre em Éfeso, no período do Império Romano, e começa com a condenação do velho Egeu à morte ou ao pagamento de vultosa fiança, por desrespeitar a lei que proibia a presença de cidadãos de Siracusa naquela cidade - o que valia reciprocamente. O condenado, a pedido do duque de Éfeso, informa que não por sua própria vontade, mas pelo infortúnio é que viera parar ali. Havia muitos anos, num acidente naval e posteriores reveses, se separara de seus dois filhos gêmeos, um perfeitamente idêntico ao outro, acompanhados respectivamente por um dos dois gêmeos, também iguais entre si, que lhes serviam como escravos, além de ter se separado da esposa amada e perdido toda sua fortuna. Embora apiedado, o duque não suspende a pena; apenas lhe concede algumas horas de vida, para conseguir dinheiro e pagar sua fiança, do que Egeu é completamente desacreditado por si mesmo: "Vai, Egeu, sem amigo e sem guarida, / Apenas adiar o fim da vida". (SHAKESPEARE, 1999, p.23) Retirados de cena tais personagens, dá-se início à segunda intriga, que monopoliza a peça até o penúltimo ato, com as confusões decorridas da presença dos dois pares de gêmeos - dois senhores e seus dois escravos; estes e aqueles coincidentemente com o mesmo nome; dois de Siracusa e dois de Éfeso), de modo não apenas a confudir outros personagens, mas inclusive os próprios irmãos. Nessa malha de intrigas, Barbara Heliodora aponta para a constituição de "uma parábola a respeito da perda de identidade do indivíduo quando a família se esfacela e ele se desmembra dela; só com a recomposição do núcleo familiar e com a reconquista da consciência de sua verdadeira identidade, é que todos readquirem o equilíbrio dentro do grupo social, ao qual passam a relacionar-se de forma correta, ou seja, de forma mais adequada à harmonia do indivíduo e da comunidade a um só tempo". (HELIODORA in: SHAKESPEARE, 1999, p.7-8) Com efeito, do encontro das duas intrigas no desfecho da comédia, quando se revela a existência de dois pares de gêmeos, quando todos imaginavam haver apenas um par na cidade, e Egeu, prestes a ser condenado à morte, identifica naqueles seus dois filhos e seus respectivos escravos, além de descobrir também sua esposa, que se tornara abadessa, de tudo isso surge a solução recíproca: tanto a confusão de identidades acaba quanto Egeu obtém dinheiro do filho que habita Éfeso, para pagar a fiança - que, aliás, não lhe é mais cobrada pelo duque - o necessário final feliz de uma obra do gênero.

The comedy of errors é a peça mais breve de Shakespeare e, exceção a todas as demais escritas pelo dramaturgo, a única cuja trama respeitaria, em princípio, a unidade de tempo, estabelecida pelas interpretações latinas e francesas da Poética de Aristóteles. Na verdade, há aqui menos obediência a preceitos do que observação de uma verossimilhança e necessiadade dramáticas, uma vez que, nas palavras de Heliodora, "Shakespeare tinha uma noção bastante clara do tempo durante o qual seria possível ser mantido o engano entre os gêmeos sem que algum tipo de explicação se fizesse indispensável [...]". (HELIODORA in: SHAKESPEARE, 1999, p.11)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: SHAKESPEARE, William. A comédia dos erros. 2a. ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.

sábado, 13 de março de 2010

O fingimento de Hamlet

Hamlet é uma daquelas obras, como o Dom Quixote, em que o caráter metalinguístico constitui elemento de grande força expressiva e estética. Quanto à obra shakespeariana, destacam-se as ocorrências em torno da companhia teatral que chega a Elsinore, onde, a pedido do príncipe dinamarquês, apresenta a peça The mousetrap. Nossa análise parte do trecho seguinte:


Speak the speech, I pray you, as I pronounced it to you, trippingly on the tongue. But if you mouth it, as many of your players do, I had as lief the town-crier spoke my lines. Nor do not saw the air too much with your hand, thus; but use all gently, for in the very torrent, tempest, and, as I may say, whirlwind of your passion, you must acquire and beget a temperance that may give it smoothness. O, it offends me to the soul to hear a robustious periwig-pated fellow tear a passion to tatters, to very rags, to split the ears of the groundlings, who, for the most part, are capable of nothing but inexplicable dumb shows and noise. I would have such a fellow whipped for o'erdoing Termagant. It out-Herods Herod. Pray you avoid it.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover, 1992. p.57)


Nesse trecho, Hamlet ensina aos atores como melhor interpretar, naturalmente em conformidade com as concepções e códigos artísticos e dramáticos da época e, particularmente, do próprio autor. É curioso que o jovem príncipe dê conselhos a um grupo teatral muito experiente e reconhecido no reino dinamarquês como dos melhores. Isso se explica pelo fato de que Hamlet tem o pleno domínio da representação, uma vez que ele é pura e simplesmente o ator de si mesmo, donde a ausência existencial patente do que suas palavras e gestos em público revelam falsamente de sua personalidade e estado emocional. Em plano mais epidérmico, o personagem representa o papel do louco, levando uns (como a rainha Gertrude, sua mãe) a acreditarem ser pela morte recente do pai e pelo casamento apressado dela com o irmão do falecido rei; levando outros (como Polonius) a pensar que pela interdição dos encontros amorosos entre o príncipe e sua filha Ofélia. Mas tanto a loucura-consequência quanto o luto-e/ou-amor-causas-supostas resultam da artimanha dramática de Hamlet, que, na realidade, nem ama Ofélia, tampouco se entristece com o falecimento do pai. Suas rebarbativas palavras, na quarta cena do ato IV, quando jura que "from this time forth,/ My thoughts be bloody, or be nothinh worth", e na primeira cena do ato V, em duelo com Laertes na demonstração do mais elevado amor e tristeza pela Ofélia então morta, quase seriam definidas por Gertrude com justeza: "This is mere madness". Não, é que a própria loucura de seu filho é fingimento de um ator que faz papel de si mesmo: seus "pensamentos sangrentos" jamais são executados, nem sequer pensados depois; e a força expressiva do excerto abaixo, dito a Laertes, no cemitério, à ocasião do enterro de Ofélia,


'Swounds, show me what thou'lt do.
Woo't weep, woo't fight, woo't fast, woo't tear thyself,
Woo't drink up eisel, eat a crocodile?
I'll do't. Dost thou come here to whine,
To outface me with leaping in her grave?
Be buried quick with her, and so will I.
And, if thou prate of mountains, let them throw
Millions of acres on us, till our ground,
Singeing his pate against the burning zone,
Make Ossa like a wart! Nay, an thou'lt mouth,
I'll rant as well as thou.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover, 1992. p.108-109)


não passa de exímio exercício retórico de quem quer convencer os interlocutores e presentes de sentimentos fictícios. O que confirmaria tais observações? Ofélia e Laertes experienciam o mesmo que Hamlet: a morte do pai. Mas se esse fato é apenas uma causa suposta da loucura fingida do protagonista, para Ofélia é razão verdadeira para sua real loucura. Também se Hamlet, frente à certeza - alcançada pelo estratagema da peça para o rei Claudius, de que este lhe assassinara o pai - não basta para a manifestação pública de nenhum gesto vingantivo até o fim da obra, Laertes, ao saber que Polonius tinha sido assassinado, sem a mínima certeza da autoria de seu assassinato, invade o castelo real e com decidida violência ameaça a vida do rei com uma espada. Parece-me mesmo expressivo que Laertes incita, nesse momento, a populaça a proclamá-lo rei, sucessão que caberia legitimamente a Hamlet, assim como o fato de que este pensa no suicídio desde o início da peça, mas nunca o comete, ao passo que Ofélia vem a se matar, sem hesitações. De modo que os filhos de Polonius funcionam como contrapontos psíquicos do príncipe dinamarquês. Mas, diga-se de passagem, também o é o norueguês, Fortimbras, também príncipe de um reino cujo monarca é seu tio: mas ao contrário de Hamlet, que no máximo enfrenta Claudius com apenas palavras cortantes, Fortimbras desrespeita a vontade do tio e invade a Dinamarca, vindo a conquistá-la. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche assim entende o mais complexo personagem de Shakespeare, com base em que procura explicar sua idéia de 'homem dionisíaco':


[...] o homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enojar atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que se lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado. O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão - tal é o ensinamento de Hamlet [...]; [...] é o verdadeiro conhecimento, o relance interior na horrenda verdade, que sobrepesa todo e qualquer motivo que possa impelir à atuação, quer em Hamlet quer no homem dionisíaco.

(NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.56)


Nietzsche, nessa que é uma das mais argutas captações da mente hamletiana, nos fornece a chave para compreender o que motivaria o personagem a, sistematicamente, se abster de agir, em nome do representar, no sentido de fingimento dramático. Na verdade, essa "essência das coisas", à qual o protagonista shakespeariano lança "um verdadeiro olhar", parece-me dizer respeito especificamente à moral. Sim, Hamlet é um moralista. Sua concepção moral, de nítidos contornos cristãos, entretanto, nada tem a ver com o catolicismo, mas muito (coincidentemente apenas?) com o luteranismo, na medida em que as ações necessariamente conduzem o homem ao pecado, jamais à vida santa; donde a réplica do personagem a Polonius, que informa sua disposição a acolher os atores recém-chegados ao castelo tal como eles merecem: "God’s bodykins, man, much better. Use every man after his desert, and who shall 'scape whipping?"


Se os atos mais nobres e filantrópicos constituem a ocultação de propósitos mesquinhos e egoístas (não à toa Machado de Assis, outro moralista a essa maneira, admirava tanto a obra-prima shakespeariana), a solução encontrada nem pode ser a via proposta por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, isto é, a postura ascética (pelo quê, o escritor brasileiro distancia-se do filósofo que igualmente tanto apreciou): o fingir. Cumpre esclarecer que o fingimento hamletiano não é o mesmo da hipocrisia social, pois se trata de uma representação que nada mascara: tirada a máscara, nada encontraríamos por trás. Quando finalmente mata Claudius, Hamlet está envenenado e ciente de que morrerá em breve. De qualquer forma, há algo de incógnito nessa sua última (e talvez única) atitude: espírito vingantivo acumulado, referente à morte do pai, da mãe e de si mesmo? Apenas de seus genitores? Somente de si mesmo? Pessoalmente, acredito ser sua própria iminente morte que o impele o assassinato do rei fraticida.

sábado, 6 de março de 2010

Shakespeare e Cervantes: breve comentário


Uma daquelas coincidências que conferem teor literário à História é o fato de que os dois maiores escritores da transição do século XVI para o XVII vieram a falecer no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Um não conheceu pessoalmente o outro; ao que tudo indica, um não leu nada do outro. Tiveram vidas muito diferentes, nasceram em reinos em guerra entre si. Mas não apenas a data da morte equipara William Shakespeare e Miguel de Cervantes: também o altíssimo posto da imortalidade e da importância cultural abriga tanto o autor de Hamlet quanto o autor de Dom Quixote. Sim, mesmo após quase 400 anos do falecimento de ambos, quando a voz dos politicamente-corretos investem todo o arsenal possível contra a validade do cânone, o devido lugar desses dois escritores não parece estar sequer ameaçado. É que a vasta galeria dos personagens shakespearianos e a célebre dupla cervantina carregam uma significância simbológica riquíssima, inesgotável, pois a criação de Ricardo III, Falstaff, Romeu e Julieta, Lady Macbeth, Otelo, Iago, Lear, Shylock, Hamlet, do Cavaleiro da Triste Figura e de Sancho Pança apreendeu a tão difícil de hoje conceber como apreensível essência humana. Todas essas são figuras arquetípicas. Se, bardolatria à parte, Harold Bloom atribui ao poeta inglês a invenção do humano, o escritor espanhol requer uma fatia nesse mérito: os protagonistas de sua obra-prima personificam o embate entre realidade e fantasia, que marca profundamente - penda mais para uma ou para outra, ou se equilibre, não importa - a psicologia de todos nós. Tal embate, para falarmos à Bloom, com certeza existia antes de Dom Quixote, mas só depois da publicação e divulgação dessa obra o mundo teve dele a nítida consciência. Em Viagens na minha terra, o romântico português Almeida Garrett chegou a fazer de Dom Quixote e Sancho Pança símbolos respectivamente do idealismo e do materialismo, dicotomia propulsora da marcha do progresso. Sabemos, aliás, o valor desta última palavra na modernidade. Modernidade também viram os românticos alemães em Shakespeare, cujas peças teatrais, sobretudo, encenariam a desobediência vitoriosa do gênio às convenções dramáticas dos clássicos. Se o teatro moderno deve muito a Shakespeare, podemos afirmar que o gênero por excelência moderno, o romance, foi gestado pela obra-prima de Cervantes. Michel Foucault vai mais longe, em As palavras e as coisas: em Dom Quixote, a palavra deixa de representar o mundo, para representar o seu próprio mundo; essa automonia referencial do texto marca, para o filósofo francês, o início da Literatura Ocidental.