sábado, 19 de junho de 2010

O homem político em Shakespeare

O homem político em Shakespeare, de Barbara Heliodora, livro cuja primeira edição data de 1978, é fruto de tese defendida três anos antes, na USP. A autora, considerada a maior especialista brasileira no poeta elisabetano, concentra o foco de uma detalhada e bem-aparelhada análise nas duas tetralogias históricas: em ordem cronológica, a primeira, composta pelas três partes de Henry VI e Richard III e a segunda, composta por Richard II, as duas partes de Henry IV e Henry V. O trabalho propõe-se a iluminar ponto relativamente negligenciado pela tradição da infinita fortuna crítica shakesperiana, isto é, qual o pensamento político do dramaturgo, em peças também relativamente pouco estudadas. Barbara Heliodora esclarece, na "Introdução", não ter em vista o ingênuo objetivo de sair a cata da postura política do Bardo, uma vez que "poucos autores terão tido sucesso tão integral em criar, a um tempo, uma obra tão vasta e individual e uma barreira tão eficiente contra as identificações fáceis entre a obra escrita e a personalidade de quem escreveu" (p.17). A colheita ideológica a que se dedica a especialista diz respeito a como Shakespeare tematiza pensamentos, costumes, atitudes dos ingleses em geral à época, perante questões políticas, propósito a que se associa a busca do entendimento de como isso se reflete na estrutura dramática das obras.

Três teriam sido as maiores influências na formação da visão política shakespeariana, todas em afinada consonância com os interesses da dinastia Tudor, sob cujo governo o Bardo viveu: a) as homilias da Igreja anglicana; b) os textos de Plutarco; e c) o maquiavelismo, primeiro via Gentillet, de caráter negativo, com as deturpações da obra do pensador florentino ainda hoje com lugar no imaginário popular (o que se verificaria na primeira tetralogia); depois o maquiavelismo compreendido de maneira mais fiel, de caráter positivo (que caracterizaria ideologicamente a segunda tetralogia). Heliodora também assinala uma progressão a distinguir um conjunto de peças do outro: a concepção do rei como representante divino, não sujeito aos julgamentos dos homens, mas apenas de Deus, torna-se um pensamento segundo o qual o governante deve prestar contas à justiça humana, servindo os interesses da commonwealth. Com as duas teatralogias, uma escrita por um autor quase novato, a outra por um dramaturgo experiente, Shakespeare, segundo Heliodora, encena os benefícios das virtudes do monarca (firmeza de caráter, senso de justiça tanto para punir quanto para premiar os súditos) e da paz interna (entre os ingleses e seu monarca) e as catástrofes oriundas da ausência desses elementos num governo. Teríamos, quanto a isso, os exemplos extremos do fraco, fleumático Henrique VI e do egoistamente cruel Ricardo III, de um lado; do outro, Henrique V, decidido, justo, com o pensamento voltado para o bem de todo o reino.

A primeira-dama shakespeariana no Brasil chama a atenção, em certa altura do livro, para o fato de que "[...] por mais ampla e variada que seja a sua obra dramática, há denominadores comuns que ligam toda essa obra, da Comédia dos erros a A tempestade. Um desses denominadores comuns, talvez o mais significativo de todos eles, na verdade, é o interesse de William Shakespeare pela função política do homem [...]" (p.98). E, concluindo, afirma: "Ler a obra de William Shakespeare só por seu aspecto político será, sem sombra de dúvida, um tremendo empobrecimento do potencial de experiência que ela oferece; mas deixar de reconhecer que a preocupação com o homem sociopolítico é uma das constantes de sua obra [...] será também um grave empobrecimento [...]" (p.257).



Referência bibliográfica: HELIODORA, Barbara. O homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

domingo, 13 de junho de 2010

Hamlet segundo Rogério Skylab

Como a maioria das pessoas, conheci a figura e a obra de Rogério Skylab no programa do Jô Soares; no meu caso, no Jô onze e meia, quando ainda o entrevistador, humorista e escritor pertencia aos quadros do SBT. Na época, pensando na tradição da MPB, o tipo de música de Rogério me levava a compará-lo às idiossincrasias macabras de Augusto dos Anjos, em relação ao lirismo parnasiano e mesmo simbolista ainda vigentes nas duas primeiras décadas do século XX. Hoje não sei bem se a comparação tem algum sentido para mim. Não importa. Não sou propriamente um fã, mas gosto (me fazem rir bastante) de algumas músicas suas, acho seus poemas - os sonetos em versos livres e sem rima que integram o livro Debaixo das rodas de um automóvel, de 2006 - algo importante na cena literária brasileira, e penso que esse multi-artista precisava ser levado mais a sério. Nada a ver com deixar de rir de suas músicas e de seus poemas; nada a ver também com o fato de ele ser formado em Letras e Filosofia - há professores desses cursos no Brasil que não merecem senão irreverentes gargalhadas. A questão é: Rogério Skylab produz algo muito mais importante do que toda essa tranqueira pseudo-boa, artisticamente cheia de bom-mocismo tony-ramosiano, de Seu Jorge & Cia.

Vamos ao que interessa: Rogério mantém um blog, no qual postou um texto maravilhoso sobre Hamlet. Acabei de o ler e não pude deixar de divulgá-lo aqui. O link está embaixo.


quinta-feira, 10 de junho de 2010

O casamento de Romeu x Julieta

O casamento de Romeu x Julieta (2004), a que cheguei a assistir, numa curiosidade de corintiano somada à de bardólatra, no cinema, foi ontem exibido pela Rede Globo, o que me fez pensar em postar algo sobre, neste blog - um comentário breve que fosse, e será.

O filme de Bruno Barreto é uma produção despretensiosamente feliz. De início, destaco as boas atuações de Luis Gustavo e de Marco Ricca, ator este que viria, de maneira convincente, a encarnar, em 2006, o papel do protagonista de Ricardo III, com direção e tradução do texto de Jô Soares. O casamento de Romeu x Julieta não se preocupa em resgatar da atmosfera da tragédia shakespeariana muito além do mote da rivalidade entre duas famílias que dificultam a oficialização do enlace amoroso dos amantes. Na verdade, de trágico aqui não há nada. Trata-se de uma comédia mesmo, com direito a enganos risíveis no transcurso do enredo e a happy-ending selado por casamento. A brincadeira futebolística, que substitui o antagonismo itálico-medieval Montecchio-Capuletto pelo bem paulistano de nossos dias corintianos-palmeirenses, traduz a peça com o resultado eficaz de aproximá-la ao máximo de uma realidade cultural popular típica de São Paulo especificamente e do Brasil em geral. O filme, no desfecho conciliador, emite a mensagem (não poderia deixar de fazê-lo) da possibilidade e necessidade de paz entre torcidas, inclusive as arqui-inimigas - mensagem que ocupa o lugar da pedagogia shakesperiana, que ensina como a guerra entre concidadãos pode levar a fins indesejáveis à saúde sócio-política do reino; em suma, a consequências trágicas. Esse ingrediente, infelizmente, não tem faltado a nossos clássicos encenados nos estádios, com a diferença de que cabe menos aos atores que à plateia a representação da tragédia.

sábado, 8 de maio de 2010

Shakespeare, o gênio original

Pedro Süssekind, atualmente professor adjunto da UFF, doutorou-se em Filosofia pela UFRJ, tendo realizado parte de sua pesquisa na Freie Universität de Berlim. O resultado desse doutorado em plagas filosóficas não poderia ter sido uma contribuição mais literária e foi publicado pela editora Jorge Zahar, em 2008, com o título Shakespeare, o gênio original. Nesse volume de menos de 150 páginas, o jovem autor carioca, nascido a 1973, considera a recepção do Bardo na Alemanha, num período importantíssimo para a filosofia e a literatura não só alemãs, mas também ocidentais: das últimas décadas do século XVIII até as três primeiras da centúria seguinte. Para termos uma ideia do significado cultural desse espaço de tempo, basta citar três nomes - Lessing, Schiller e Goethe -. O primeiro, autor da famosa reflexão sobre as diferenças entre a escultura (junto à pintura) e a poesia, a partir do exemplo da estátua de Laocoonte e do excerto da Eneida de Virgílio, em que se narra o trágico episódio da morte desse sacerdote troiano de Apolo, foi eminente crítico teatral, que empreendeu verdadeira campanha contra a obediência ao modelo dramático francês, pautado em interpretações rigorosamente normativas da Poética aristotélica. Lessing, também dramaturgo, autor da famosa peça Natã, o sábio, pertence à Aufklärung (o iluminismo alemão), antecedente à ruptura paradigmática realizada pelo sistema filosófico de Immanuel Kant, e anseava por caminhos mais adequados à expressão nacional do teatro produzido por escritores alemães. Ao modelo clássico de influência francesa, contrapunha a genialidade livre do inglês elisabetano William Shakespeare, cujas tragédias, muitas das vezes, não deixam de apresentar passagens cômicas, com personagens não apenas nobres, mas também do extrato popular... e tanto nesse gênero quanto nas comédias e nos dramas históricos desrespeitava quase sempre o poeta unidades de tempo e de espaço - ou seja - o Bardo era um bárbaro para a gramática dramatúrgica clássica francesa, muito influente na Alemanha. Ao fim e ao cabo, 'gênio' era o conceito-chave para o que pensava Lessing, e o foi também para a estética kantiana, e se tornou a divinização do artista pré-romântico, a exemplo de Goethe e Schiller (nas décadas de Sturm und Drang) e, a seguir, do artista romântico. O gênio, numa conceituação mais superficial e ampla possível, equiparava-se a Deus, no seu poder de criação ex-nihilo (do nada), liberto que está para não legitimar sua arte na conformidade com modelos e normas, como acontecia com os autores clássicos, que criavam, sem nunca perder de vista a ideia de imitatio: Camões, poeta clássico, jamais poderia ter escrito uma epopeia, se não tivesse observado a estrutura da Eneida, que por sua vez teve na Ilíada e na Odisseia de Homero os grandes modelos poéticos [vide nota abaixo].

Em Shakespeare, o gênio original, Süssekind discute a estética do gênio, a ideia de originalidade, tece um painel das concepções e dos procedimentos no classicismo, percorre textos críticos sobre teatro e sobre o poeta inglês de Lessing, Lenz, Herder, Schiller e Goethe, balizando com muita competência e clareza as diferenças entre o que cada um pensou, e até as modificações de pensamento referente ao assunto ao longos dos muitos anos vividos pelo eleito dos deuses e autor de Os sofrimentos do jovem Werther e Fausto. É um trabalho que clama por ser lido, pelo interesse analítico e histórico. Afinal, muito da responsabilidade de Shakespeare encontrar-se no cânone ocidental deve-se a esses alemães dos séculos XVIII-XIX.



NOTA: embora tido por gênio, dentro das características acima esclarecidas, William Shakespeare foi (não poderia ser diferente) um autor clássico. Mesmo que peças suas não respeitem, de fato, unidade de tempo e de espaço, assim como as fronteiras entre os gêneros trágico e cômico, a imitatio está presente em sua criação: o teatro do romano Plauto na estrutura dramática de A comédia dos erros, as narrativas renascentistas itálicas nos temas de Otelo e Romeu e Julieta e por aí vai.

sábado, 24 de abril de 2010

O 23 de Abril


Não postei nada ontem aqui. Uma vergonha para um bardólatra. Peço desculpas. Não: peço perdão! Todavia, antes o resto de um silêncio que meras palavras, palavras, palavras... Hoje não serei o autor de uma tardia homenagem ao 23 de Abril, quando se comemoram os aniversários de nascimento e morte de Shakespeare. Confesso: não tenho tomado, nestas últimas semanas, minhas shakespearinas. Fases da vida. Atenho-me a recomendar um texto disponível no endereço (a propósito, recomendo todo o blog - bem-escrito, muito culto e inteligente, como poucos recantos da internet):

http://wwwurbietorbi.blogspot.com/2010/04/o-mais-vasto-dos-seres-humanos.html

sexta-feira, 26 de março de 2010

Álvares de Azevedo: um shakespeariano

Em artigo publicado na Semana Literária, a 12 de março de 1864, Machado de Assis tece considerações sobre a obra de Álvares de Azevedo, cerca de uma década após a morte desse poeta. Em certa passagem, diz o futuro romancista de Memórias póstumas de Brás Cubas:

"Cita-se sempre, a propósito do autor de Lira dos vinte anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma freqüente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horácio, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de uma página de versos. Amava Shakespeare [...]." (ASSIS in: AZEVEDO, 2000, p.25)

Mais do que nenhum outro nome do período romântico brasileiro, Álvares de Azevedo amou, de fato, a obra shakespeariana. Além de versos inspirados na referida cena de Hamlet, como o início do poema "Glória moribunda", no qual lemos

"É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos louros.
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto;
Nessas órbitas - ocas, denegridas! -
Como era puro seu olhar sombrio!"
(AZEVEDO, 2000, p.293)

encontramos várias epígrafes extraídas das peças do Bardo inglês em Lira dos vinte anos, Poema do frade, O conde Lopo, Noite na taverna e O livro de fra. Gondicário. No prefácio de Macário, ao tentar esclarecer seu confuso ideal dramático, Azevedo não perde de vista a participação da "força das paixões ardentes de Shakespeare", e aproveita o ensejo para criticar a "tradução bastarda" de Ducis, "verdadeira castração do Othelo", bem como a de Vigny (AZEVEDO, 2000, p.507). O poeta paulista deve ter ficado bastante irritado com o resultado da empreitada desses dois franceses, pois, na "Carta sobre a atualidade do teatro entre nós", encontra ensejo para mais uma alfinetada. Aliás, em tal texto, ao argumentar em favor do gênero cômico, desvalorizado no Brasil, frente a gêneros 'sérios', como a tragédia, Shakespeare também aparece como exemplo (em assertivas um tanto quanto questionáveis, senão indefensáveis, a meu ver):

"Shakespeare preferia a galhofa das Alegres mulheres de Windsor - What you will, A tempestade, etc, aos monólogos de Henrique III [sic], ao desespero do Rei Lear, à dúvida de Hamlet." (AZEVEDO, 2000, p.746)

Álvares de Azevedo herda a admiração de um Lessing e dos pré-românticos alemães (Herder, Goethe, Schiller) pela obra shakespeariana, tomada como comprovação de que o gênio está acima de convenções dramáticas impostas pela autoridade do teatro clássico francês. Se já enxergaram na ironia machadiana uma continuidade da ironia azevediana, deve-se também observar que Machado de Assis também compartilhou do mesmo amor devotado ao poeta elizabetano. Dom Casmurro será compreendido por Helen Caldweel como "o Otelo brasileiro", em seu clássico estudo. Curiosamente, há notícia de que Azevedo escrevera uma espécie de imitação do último ato dessa mesma peça - texto infelizmente perdido. Por outro lado, cumpre dizer que Azevedo não revela, em sua obra tanto literária quanto ensaística, interesse e entendimento sobre Shakespeare que ultrapasse a sedução pelo que há de mais passional - caso do ciúme do Mouro veneziano, do amor entre Romeu e Julieta - e mórbido - caso da visão da caveira de Yorick - o que o romantismo do autor apenas explica, mas não desculpa. A profundidade poética e filosófica shakespeariana apenas viria a reconhecê-la, pela primeira vez no Brasil, o romancista carioca.

Referência bibliográfica: AZEVEDO, Álvares de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

sábado, 20 de março de 2010

Hamlet segundo Vigotski

Quem cometeu a atrocidade contra si mesmo de escolher graduar-se, com intuitos profissionais, em alguma licenciatura certamente terá lido (ou, pelo menos, ouvido falar de) Lev S. Vigotski - nome tão citado nas faculdades de educação quanto o de Jean Piaget. Mas pergunto: quem teria conhecimento, nos cursos de Letras do País, dentre professores e alunos, do fato de que o eminente psicólogo bielo-russo escreveu uma das obras fundamentais da crítica shakespeariana: A tragédia de Hamlet, príncipe de Dinamarca? Em matéria de hermenêutica literária, o volume consta como das melhores coisas que já li na minha vida - graças à louvável iniciativa da Martins Fontes, com a colaboração de um dos maiores tradutores brasileiros, Paulo Bezerra, de disponibilizar, em 1999, seu acesso ao público do Brasil.

Vigotski, na verdade, não era um bardólatra, mas um hamletólatra. Escreveu essa monografia sobre a obra-prima shakespeariana e ainda projetava um outro volume, no qual analisaria a recepção crítica e importantes montagens da peça - o que, infelizmente, não se realizou, devido à ocupação com a pesquisa que lhe daria maior notoriedade e à parcimônia de tempo que a vida lhe reservou, tendo falecido aos trinta e oito anos incompletos, em 1934.

No prefácio à edição brasileira, Paulo Bezerra o considera "um crítico muito original", que refletiu sobre "questões que a crítica só iria abordar bem mais tarde". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.ix) Vigotski, em A tragédia de Hamlet..., pauta-se por concepção de leitura que rechaça a necessidade tanto de contextualizações históricas e biográficas quanto de revisões de estudos já produzidos, num entendimento de que "todas as interpretações são admissíveis e o crítico pode construir sua interpretação sem se preocupar com rejeitar as interpretações anteriores". (BEZERRA in: VIGOTSKI, 1999, p.x-xi) Tal concepção o autor bielo-russo denominou "crítica de leitor".

Seu livro se estrutura em dez capítulos, antecedidos por um prefácio e incrementados com diversas notas, cujo maior interesse, a meu ver, reside nas informações fornecidas sobre a recepção de Shakespeare e, particularmente, de sua tragédia analisada, na Rússia. Vigotski parte do pressuposto de que jamais decifraremos plenamente essa peça, cuja parcela inteligível - o enredo, a fábula - se representa pela expressão desdenhosa, dita pelo próprio protagonista, "words, words, words", e cuja parcela insondável se representa pela expressão com que também o príncipe dinamarquês se despede deste mundo: "the rest is silence". De um lado, a face diurna, terrena, natural, racional da obra; de outro, sua face noturna, além-tumular, sobrenatural, insana - às quais correspondem dois planos, um marcado pelas constantes narrações feitas pelos personagens em geral, o outro pelos vários monólogos de Hamlet. A propósito, Vigotski chama a atenção para o fato de que, nessa peça, praticamente inexiste ação, a qual se concentra em seu desfecho. Além de o protagonista não agir, conforme sempre pontua a exegese shakespeariana, todos os acontecimentos ou ocorreram antes do início do drama (o assassinato do rei, o casamento de Claudius e Gertrude...) ou ocorrem fora do palco (a morte de Ophelia, a luta de Hamlet com os piratas...), do que ficamos sabendo porque o narram os personagens. Paradoxalmente, embora não haja ação, ou por isso mesmo, Hamlet seria a "tragédia das tragédias", pois nela "há tudo o que na tragédia constitui a tragédia; o próprio princípio trágico, a própria essência da tragédia, sua idéia, seu tom; o que transforma o drama comum em tragédia; o que é comum a todas as tragédias; aquele abismo trágico e aquelas leis do trágico sobre as quais se estruturam todas as tragédias". (VIGOTSKI, 1999, p.3)

Segundo a análise vigotskiana, Hamlet passa por um processo de transformação psicológica (e existencial) a partir da morte de seu pai; transformação que se completa, quando o filho encontra-se com o fantasma, e pode ser entendida como um segundo nascimento ou divórcio da razão, da vida e do mundo. Todas as coisas vislumbradas pelo príncipe passam a se referir a algo que está além e é incompreensível, donde sua inércia, sua falta de vontade. Em suma: a alma do personagem, rapta-a e conduz um automatismo trágico de grande força magnética, capaz de atrair os demais que se destacam na peça para um fim igualmente trágico, a exemplo do que acontece com Ophelia, Guildenstern e Rosencrantz (aliás, todos os personagens importantes morrem, exceto Horatio, que, somente a súplicas de Hamlet, não se suicida).

O que engatilha os eventos trágicos dessa obra shakespeariana, para o autor bielo-russo, é tanto uma frágil vitória do rei Hamlet contra o rei norueguês, o pai de Fortinbras, quanto o assassinato daquele pelas mãos de seu próprio irmão, Claudius. Haveria, portanto, um cruzamento e uma interdependência, no desenvolvimento da tragédia, de dois planos: o familiar e o político. Com efeito, Vigotski destaca como Shakespeare não se esquece, no título da peça, de pospor ao nome do personagem sua condição política: "príncipe da Dinamarca". Todavia, o espectador apenas tem acesso direto aos eventos familiares; os políticos - a campanha do príncipe norueguês contra o reino dinamarquês, com o objetivo de reaver a coroa à que teria direito na sucessão - dão-se todos fora de cena e só, quando Hamlet, sua mãe, seu tio, Laertes estão mortos, se revelam aos olhos do público, com a tomada do castelo por Fortinbras e seu exército. A tragédia, desse modo, é também a dissolução de uma dinastia e a ocupação por uma outra do trono da Dinamarca.

Em vez de ter um efeito catártico, como se sucede nas tragédias clássicas, Hamlet, em seu desfecho, segundo Vigotski, transtorna o espectador, sem nada expurgar. Aliás, não haveria propriamente um fim: há um "resto" que o protagonista não revela, levando-o consigo ao túmulo. O que Horatio poderia relatar não passaria de "palavras, palavras, palavras". Na verdade, se pudéssemos compreender esse resto, suportaríamos ouvi-lo? Não dissera o fantasma a Hamlet que a narrativa do que passava, na condição de morto cheio de pecados, poderia lhe fazer saltarem os olhos, como estrelas, de suas órbitas? Vigotski compara o espectador da peça a Claudius: este não consegue assistir até ao fim a A ratoeira, ou a morte de Gonzago. "[...] nós todos, nascidos e cúmplices da tragédia, ao contemplá-la vemos reproduzida em cena nossa culpa, a culpa de havermos nascido, a culpa de existirmos, e nos familiarizarmos com a dor da tragédia". (VIGOTSKI, 1999, p.185) E, assim, talvez sejamos acometidos pela vontade, como Horatio, de tomarmos também o veneno que ainda sobra na taça.

A análise desenvolvida em A tragédia de Hamlet... é muito pormenorizada, buscando interpretar diversos detalhes da peça, as relações do protagonista com os personagens mais importantes, o significado do fantasma... Minha resenha se atém a levantar pontos principais dessa monografia, que supera de longe, em argúcia, equilíbrio e fundamentação interpretativa, as páginas do também fundamental Hamlet, poema ilimitado, de Harold Bloom.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: VIGOTSKI, L.S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Sobre The comedy of errors

Barbara Heliodora, em sua introdução à edição da peça que ela mesma traduziu, informa que "A comédia dos erros é possivelmente a primeira peça de Shakespeare" e a "data da composição é incerta, com sugestões que variam de um extremo e improvável 1584 até 1592, e o primeiro registro de encenação é o do espetáculo realizado a 28 de dezembro de 1594, como parte dos festejos natalinos dos estudantes de Direito em Gray's Inn, em Londres". (HELIODORA in: SHAKESPEARE, 1999, p.5) Ainda segundo a eminente especialista brasileira na obra do Bardo, o autor, para compor sua comédia, aproveitou elementos de duas comédias de Plauto - Menaechmi e Amphiruo -, além de realizar importantes diálogos intertextuais com passagens bíblicas, a Epístola de São Paulo aos Efésios e os Atos dos Apóstolos - tudo isso, como aconteceria geralmente na gestão dramatúrgica do poeta elisabetano, resultando numa obra bem distinta e mais sofisticada do que os textos-fonte.

A ação transcorre em Éfeso, no período do Império Romano, e começa com a condenação do velho Egeu à morte ou ao pagamento de vultosa fiança, por desrespeitar a lei que proibia a presença de cidadãos de Siracusa naquela cidade - o que valia reciprocamente. O condenado, a pedido do duque de Éfeso, informa que não por sua própria vontade, mas pelo infortúnio é que viera parar ali. Havia muitos anos, num acidente naval e posteriores reveses, se separara de seus dois filhos gêmeos, um perfeitamente idêntico ao outro, acompanhados respectivamente por um dos dois gêmeos, também iguais entre si, que lhes serviam como escravos, além de ter se separado da esposa amada e perdido toda sua fortuna. Embora apiedado, o duque não suspende a pena; apenas lhe concede algumas horas de vida, para conseguir dinheiro e pagar sua fiança, do que Egeu é completamente desacreditado por si mesmo: "Vai, Egeu, sem amigo e sem guarida, / Apenas adiar o fim da vida". (SHAKESPEARE, 1999, p.23) Retirados de cena tais personagens, dá-se início à segunda intriga, que monopoliza a peça até o penúltimo ato, com as confusões decorridas da presença dos dois pares de gêmeos - dois senhores e seus dois escravos; estes e aqueles coincidentemente com o mesmo nome; dois de Siracusa e dois de Éfeso), de modo não apenas a confudir outros personagens, mas inclusive os próprios irmãos. Nessa malha de intrigas, Barbara Heliodora aponta para a constituição de "uma parábola a respeito da perda de identidade do indivíduo quando a família se esfacela e ele se desmembra dela; só com a recomposição do núcleo familiar e com a reconquista da consciência de sua verdadeira identidade, é que todos readquirem o equilíbrio dentro do grupo social, ao qual passam a relacionar-se de forma correta, ou seja, de forma mais adequada à harmonia do indivíduo e da comunidade a um só tempo". (HELIODORA in: SHAKESPEARE, 1999, p.7-8) Com efeito, do encontro das duas intrigas no desfecho da comédia, quando se revela a existência de dois pares de gêmeos, quando todos imaginavam haver apenas um par na cidade, e Egeu, prestes a ser condenado à morte, identifica naqueles seus dois filhos e seus respectivos escravos, além de descobrir também sua esposa, que se tornara abadessa, de tudo isso surge a solução recíproca: tanto a confusão de identidades acaba quanto Egeu obtém dinheiro do filho que habita Éfeso, para pagar a fiança - que, aliás, não lhe é mais cobrada pelo duque - o necessário final feliz de uma obra do gênero.

The comedy of errors é a peça mais breve de Shakespeare e, exceção a todas as demais escritas pelo dramaturgo, a única cuja trama respeitaria, em princípio, a unidade de tempo, estabelecida pelas interpretações latinas e francesas da Poética de Aristóteles. Na verdade, há aqui menos obediência a preceitos do que observação de uma verossimilhança e necessiadade dramáticas, uma vez que, nas palavras de Heliodora, "Shakespeare tinha uma noção bastante clara do tempo durante o qual seria possível ser mantido o engano entre os gêmeos sem que algum tipo de explicação se fizesse indispensável [...]". (HELIODORA in: SHAKESPEARE, 1999, p.11)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: SHAKESPEARE, William. A comédia dos erros. 2a. ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.

sábado, 13 de março de 2010

O fingimento de Hamlet

Hamlet é uma daquelas obras, como o Dom Quixote, em que o caráter metalinguístico constitui elemento de grande força expressiva e estética. Quanto à obra shakespeariana, destacam-se as ocorrências em torno da companhia teatral que chega a Elsinore, onde, a pedido do príncipe dinamarquês, apresenta a peça The mousetrap. Nossa análise parte do trecho seguinte:


Speak the speech, I pray you, as I pronounced it to you, trippingly on the tongue. But if you mouth it, as many of your players do, I had as lief the town-crier spoke my lines. Nor do not saw the air too much with your hand, thus; but use all gently, for in the very torrent, tempest, and, as I may say, whirlwind of your passion, you must acquire and beget a temperance that may give it smoothness. O, it offends me to the soul to hear a robustious periwig-pated fellow tear a passion to tatters, to very rags, to split the ears of the groundlings, who, for the most part, are capable of nothing but inexplicable dumb shows and noise. I would have such a fellow whipped for o'erdoing Termagant. It out-Herods Herod. Pray you avoid it.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover, 1992. p.57)


Nesse trecho, Hamlet ensina aos atores como melhor interpretar, naturalmente em conformidade com as concepções e códigos artísticos e dramáticos da época e, particularmente, do próprio autor. É curioso que o jovem príncipe dê conselhos a um grupo teatral muito experiente e reconhecido no reino dinamarquês como dos melhores. Isso se explica pelo fato de que Hamlet tem o pleno domínio da representação, uma vez que ele é pura e simplesmente o ator de si mesmo, donde a ausência existencial patente do que suas palavras e gestos em público revelam falsamente de sua personalidade e estado emocional. Em plano mais epidérmico, o personagem representa o papel do louco, levando uns (como a rainha Gertrude, sua mãe) a acreditarem ser pela morte recente do pai e pelo casamento apressado dela com o irmão do falecido rei; levando outros (como Polonius) a pensar que pela interdição dos encontros amorosos entre o príncipe e sua filha Ofélia. Mas tanto a loucura-consequência quanto o luto-e/ou-amor-causas-supostas resultam da artimanha dramática de Hamlet, que, na realidade, nem ama Ofélia, tampouco se entristece com o falecimento do pai. Suas rebarbativas palavras, na quarta cena do ato IV, quando jura que "from this time forth,/ My thoughts be bloody, or be nothinh worth", e na primeira cena do ato V, em duelo com Laertes na demonstração do mais elevado amor e tristeza pela Ofélia então morta, quase seriam definidas por Gertrude com justeza: "This is mere madness". Não, é que a própria loucura de seu filho é fingimento de um ator que faz papel de si mesmo: seus "pensamentos sangrentos" jamais são executados, nem sequer pensados depois; e a força expressiva do excerto abaixo, dito a Laertes, no cemitério, à ocasião do enterro de Ofélia,


'Swounds, show me what thou'lt do.
Woo't weep, woo't fight, woo't fast, woo't tear thyself,
Woo't drink up eisel, eat a crocodile?
I'll do't. Dost thou come here to whine,
To outface me with leaping in her grave?
Be buried quick with her, and so will I.
And, if thou prate of mountains, let them throw
Millions of acres on us, till our ground,
Singeing his pate against the burning zone,
Make Ossa like a wart! Nay, an thou'lt mouth,
I'll rant as well as thou.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover, 1992. p.108-109)


não passa de exímio exercício retórico de quem quer convencer os interlocutores e presentes de sentimentos fictícios. O que confirmaria tais observações? Ofélia e Laertes experienciam o mesmo que Hamlet: a morte do pai. Mas se esse fato é apenas uma causa suposta da loucura fingida do protagonista, para Ofélia é razão verdadeira para sua real loucura. Também se Hamlet, frente à certeza - alcançada pelo estratagema da peça para o rei Claudius, de que este lhe assassinara o pai - não basta para a manifestação pública de nenhum gesto vingantivo até o fim da obra, Laertes, ao saber que Polonius tinha sido assassinado, sem a mínima certeza da autoria de seu assassinato, invade o castelo real e com decidida violência ameaça a vida do rei com uma espada. Parece-me mesmo expressivo que Laertes incita, nesse momento, a populaça a proclamá-lo rei, sucessão que caberia legitimamente a Hamlet, assim como o fato de que este pensa no suicídio desde o início da peça, mas nunca o comete, ao passo que Ofélia vem a se matar, sem hesitações. De modo que os filhos de Polonius funcionam como contrapontos psíquicos do príncipe dinamarquês. Mas, diga-se de passagem, também o é o norueguês, Fortimbras, também príncipe de um reino cujo monarca é seu tio: mas ao contrário de Hamlet, que no máximo enfrenta Claudius com apenas palavras cortantes, Fortimbras desrespeita a vontade do tio e invade a Dinamarca, vindo a conquistá-la. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche assim entende o mais complexo personagem de Shakespeare, com base em que procura explicar sua idéia de 'homem dionisíaco':


[...] o homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enojar atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que se lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado. O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão - tal é o ensinamento de Hamlet [...]; [...] é o verdadeiro conhecimento, o relance interior na horrenda verdade, que sobrepesa todo e qualquer motivo que possa impelir à atuação, quer em Hamlet quer no homem dionisíaco.

(NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.56)


Nietzsche, nessa que é uma das mais argutas captações da mente hamletiana, nos fornece a chave para compreender o que motivaria o personagem a, sistematicamente, se abster de agir, em nome do representar, no sentido de fingimento dramático. Na verdade, essa "essência das coisas", à qual o protagonista shakespeariano lança "um verdadeiro olhar", parece-me dizer respeito especificamente à moral. Sim, Hamlet é um moralista. Sua concepção moral, de nítidos contornos cristãos, entretanto, nada tem a ver com o catolicismo, mas muito (coincidentemente apenas?) com o luteranismo, na medida em que as ações necessariamente conduzem o homem ao pecado, jamais à vida santa; donde a réplica do personagem a Polonius, que informa sua disposição a acolher os atores recém-chegados ao castelo tal como eles merecem: "God’s bodykins, man, much better. Use every man after his desert, and who shall 'scape whipping?"


Se os atos mais nobres e filantrópicos constituem a ocultação de propósitos mesquinhos e egoístas (não à toa Machado de Assis, outro moralista a essa maneira, admirava tanto a obra-prima shakespeariana), a solução encontrada nem pode ser a via proposta por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, isto é, a postura ascética (pelo quê, o escritor brasileiro distancia-se do filósofo que igualmente tanto apreciou): o fingir. Cumpre esclarecer que o fingimento hamletiano não é o mesmo da hipocrisia social, pois se trata de uma representação que nada mascara: tirada a máscara, nada encontraríamos por trás. Quando finalmente mata Claudius, Hamlet está envenenado e ciente de que morrerá em breve. De qualquer forma, há algo de incógnito nessa sua última (e talvez única) atitude: espírito vingantivo acumulado, referente à morte do pai, da mãe e de si mesmo? Apenas de seus genitores? Somente de si mesmo? Pessoalmente, acredito ser sua própria iminente morte que o impele o assassinato do rei fraticida.

sábado, 6 de março de 2010

Shakespeare e Cervantes: breve comentário


Uma daquelas coincidências que conferem teor literário à História é o fato de que os dois maiores escritores da transição do século XVI para o XVII vieram a falecer no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Um não conheceu pessoalmente o outro; ao que tudo indica, um não leu nada do outro. Tiveram vidas muito diferentes, nasceram em reinos em guerra entre si. Mas não apenas a data da morte equipara William Shakespeare e Miguel de Cervantes: também o altíssimo posto da imortalidade e da importância cultural abriga tanto o autor de Hamlet quanto o autor de Dom Quixote. Sim, mesmo após quase 400 anos do falecimento de ambos, quando a voz dos politicamente-corretos investem todo o arsenal possível contra a validade do cânone, o devido lugar desses dois escritores não parece estar sequer ameaçado. É que a vasta galeria dos personagens shakespearianos e a célebre dupla cervantina carregam uma significância simbológica riquíssima, inesgotável, pois a criação de Ricardo III, Falstaff, Romeu e Julieta, Lady Macbeth, Otelo, Iago, Lear, Shylock, Hamlet, do Cavaleiro da Triste Figura e de Sancho Pança apreendeu a tão difícil de hoje conceber como apreensível essência humana. Todas essas são figuras arquetípicas. Se, bardolatria à parte, Harold Bloom atribui ao poeta inglês a invenção do humano, o escritor espanhol requer uma fatia nesse mérito: os protagonistas de sua obra-prima personificam o embate entre realidade e fantasia, que marca profundamente - penda mais para uma ou para outra, ou se equilibre, não importa - a psicologia de todos nós. Tal embate, para falarmos à Bloom, com certeza existia antes de Dom Quixote, mas só depois da publicação e divulgação dessa obra o mundo teve dele a nítida consciência. Em Viagens na minha terra, o romântico português Almeida Garrett chegou a fazer de Dom Quixote e Sancho Pança símbolos respectivamente do idealismo e do materialismo, dicotomia propulsora da marcha do progresso. Sabemos, aliás, o valor desta última palavra na modernidade. Modernidade também viram os românticos alemães em Shakespeare, cujas peças teatrais, sobretudo, encenariam a desobediência vitoriosa do gênio às convenções dramáticas dos clássicos. Se o teatro moderno deve muito a Shakespeare, podemos afirmar que o gênero por excelência moderno, o romance, foi gestado pela obra-prima de Cervantes. Michel Foucault vai mais longe, em As palavras e as coisas: em Dom Quixote, a palavra deixa de representar o mundo, para representar o seu próprio mundo; essa automonia referencial do texto marca, para o filósofo francês, o início da Literatura Ocidental.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Sobre Richard III

O drama histórico Richard III, de 1593, além de ser uma das peças mais lidas e encenadas de Shakespeare, situa-se entre as mais importantes realizações do autor em seus dez primeiros anos de atividade como dramaturgo. Tanto a popularidade quanto a qualidade dessa obra residem principalmente na força psicológica do protagonista – um dos maiores crápulas do teatro ocidental, capaz não apenas de seduzir, em condições que beiram o inverossímil a viúva Ana, mas também os próprios leitores e platéia. A perversidade e o cinismo extremos, a serviço de uma ambição doentia pelo trono inglês, que leva o duque de Gloucester, futuro Ricardo III, a assassinar ou mandar assassinar até familiares, no julgamento de alguns, a exemplo de um Harold Bloom, soam caricatos; porém, haja vista o caso, na literatura portuguesa, de um Eça de Queirós, sabemos o quanto os contornos fortes de uma caricatura têm grande eficácia. De qualquer forma, parece-nos que Shakespeare não isenta esse personagem, nem outros destacáveis na peça, de uma dimensão psicológica que os faça superar a barreira do caricaturesco.
Em linhas gerais, trata-se de uma peça sobre o conflito entre a consciência e a ambição, o conflito entre a obediência a ordens superiores e a conduta ética conforme os preceitos cristãos, donde salientar-se o sentimento de culpa e vingança em Richard III. Duas passagens, nesse sentido, se destacam: a quarta cena do primeiro ato, na qual Clarence será assassinado por dois homens a quem Gloucester pagará pelo serviço, e a terceira do quinto ato, na qual os espectros das pessoas mortas pela vontade do protagonista lhe aparecem em sonho, para atormentá-lo às vésperas da batalha contra o exército de Richmond, que, vitorioso, torna-se-á Henrique VII. Antes de assassinar Clarence, irmão do futuro Ricardo III, os dois homens entram num conflito, de cores verdadeiramente risíveis, entre a culpa de um crime a ser praticado e a alegria material da recompensa prometida. Da boca de um deles ouvimos uma muito bem-cabida definição da consciência moral, que os acomete:

“É uma coisa perigosa a consciência; deixa a gente covarde. Um indivíduo não pode roubar coisa alguma, sem que ela o acuse; não pode blasfemar, sem que ela o contenha; não pode deitar-se com a mulher do vizinho, sem que o denuncie: é um espírito tímido e envergonhado, que promove a revolta no coração da gente e levanta obstáculos a toda hora. De uma feita obrigou-me a restituir uma bolsa de ouro que eu havia encontrado. Quem lhe dá guarida vira mendigo; expulsam-na das cidades e dos burgos, como coisa perigosa; e quem quer que deseje viver bem, trata de confiar apenas em si próprio e de passar sem ela.”

(SHAKESPEARE, William. Ricardo III. In: Teatro completo: dramas históricos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. p.570.)

Numa alternância contínua entre a culpa do crime e a ambição do prêmio, que somente tem fim, após o assassinato, quando, significativamente, um dos assassinos arrepende-se do que fez e desiste da recompensa, enquanto o outro não se abala e corre entusiasmado para noticiar o feito ao duque de Gloucester. Mas o próprio assassinado, Clarence, embora clame pelas leis divinas e pela compaixão de seus algozes, ele não escapa à culpa de crimes anteriormente praticados. Em jogo de refinada ironia, o personagem, logo depois de replicar ao “O que vamos fazer é por mandado”, dito pelos assassinos, argumentando que “O grande Rei dos reis, na sua tábua / das leis expressamente vos ordena: / Não matarás”, defende-se de uma acusação, nestes termos: “Ah! por quem cometi tantas vilezas? / Por meu irmão Eduardo”. (SHAKESPEARE, William. Ricardo III. In: Teatro completo: dramas históricos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. p.570-571.) De fato, parafraseando memoráveis palavras de um professor de Sociologia da Educação da FAE/UFMG, Antônio Machado, o mais limpo em Richard III tem sarna – o que confere uma complexidade à trama, muito distante da superficialidade maniqueísta da caricatura. Ademais, na cena dos espectros, o grande vilão da peça também se verá às voltas com sua consciência – esse morcego que, por mais que façamos, entre imperceptivelmente em nosso quarto, em paráfrase ao excelente poeta paraibano do Eu –, na forma dos espectros, os quais, dentro de um propósito cênico de grande eficácia, aparecem simultaneamente para Richmond, mas para prenunciar a este sua vitória na eminente batalha contra o duque de Gloucester.

Aliás, chama muito a atenção a recorrência de premunições e profecias, o mais das vezes ocorridas em sonhos e nenhuma delas falaciosas – como será de praxe na obra shakespeariana, a exemplo de Macbeth. Logo no início de Richard III, nas palavras de Gloucester, em seu monólogo de abertura, sabemos de uma “tola profecia, / segundo a qual um G será o assassino / dos herdeiros de Eduardo”. (SHAKESPEARE, William. Ricardo III. In: Teatro completo: dramas históricos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. p.551.) Ora, os leitores da peça de imediato percebem que o G não é de George Clarence, o suspeito do rei Eduardo, mas de Gloucester, responsável pela morte das duas crianças que sucederiam no trono inglês. No último ato, quando o já Ricardo III sai de sua tenda e avista o céu, dá-se pela falta do sol, ausência que também anuncia sua derrota no confronto com Richmond – uma vez que o sol se estabelece, desde os primeiros versos da peça, como metáfora-símbolo do protagonista, com o trocadilho “sun of York”, que soa como “son of York” – Gloucester é filho (ou membro) da casa de York, que destronara em batalha tematizada em Henry VI, a casa de Lencastre. A ligação desse personagem com o sol parece-nos um tanto quanto estranha, dado seu caráter noturno – sombrio, perverso –, ainda mais por se tratar, ao fim e ao cabo, de uma peça clássica, renascentista, sob o peso, portanto, de uma simbologia positiva ligada ao sol, imagem de beleza, verdade e bem. Sabemos que Gloucester, além de falso e malévolo, ainda é deformado, numa consonância, tipicamente clássica, entre sua feiúra moral e sua feiúra física (o que efetivamente se modifica no romantismo, quando teremos um Quasímodo de Victor Hugo, personagem ultrajantemente feio, mas plenamente bondoso e ingênuo).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Duas atualizações fílmicas: Romeo + Juliet e Hamlet

Shakespeare, como todos sabemos, já rendeu várias adaptações no cinema. Particularmente, a década de 1990 foi bastante produtiva quanto a essa proposta. Temos o Much ado about nothing (1993), de Kenneth Branagh, Othello (1995), de Olivier Parker, o insuperável Hamlet (1996), de Kenneth Branagh, Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhrmann, A midnight summer's dream (1999), de Michael Hoffman, e o outro Hamlet (2000), de Michael Almereyda - além do interessente documentário-montagem de Al Pacino, Looking for Richard (1996), dentre as mais conhecidas produções fílmicas shakespearianas.

Naturalmente, as peças sofrem modificações importantes (e, por vezes, necessárias), ao serem traduzidas para o código das telas. Dos filmes acima elencados, o Romeo + Juliet de Luhrmann e o Hamlet de Almereyda foram, certamente, os mais ousados nesse quesito. Em ambos os casos, ambientam-se as tramas na atualidade. Os Montecchii e os Capuletti são gangs rivais, enfrentando-se com revólveres, perseguindo-se de carros estilosos; Hamlet envia a Claudius um fax, no qual informa seu retorno a... Nova Iorque, cidade sede da empresa Denmark Corporation. Sou da opinião de que uma atualização do cenário shakespeariano não resulta necessariamente numa heresia - Romeo + Juliet, para mim, é um filme muito bem-sucessido em sua proposta; todos os personagens, na média, são dramaticamente convincentes, dentre os quais destacaria o frei Lourenço, Tebaldo, o próprio personagem vivido por Leonardo DiCaprio e o perfeito Mercúcio de Harold Perrineau. Já não é o que acontece em Hamlet, cujo roteiro e atores, em geral, não dão conta de construir a atmosfera tensa, sombria e trágica da peça. De modo que nenhum personagem salva a película. A cena da conversa do protagonista com o fantasma do pai, por exemplo, irrita pela má-elaboração: este abraça, descabela, empurra o filho, como se a vida e a materialidade jamais o tivessem abandonado. A do cemitério é mais do que frustrante: eliminaram-se as reflexões inspiradas pela contemplação da caveira de Yorick - Hamlet e Horácio chegam ao cemitério, já Ofélia sendo enterrada - e tudo se passa com a expressividade (para lembrar a comparação de um professor de literatura do programa Vestibulando) de uma ameba em coma alcoólico. O célebre monólogo "To be or not to be" faz-se em duas partes; uma repete, em vídeo produzido pelo próprio Hamlet, amante de filmes e viciado em filmar a si e a pessoas próximas, a pergunta inicial, antecedida pelas reflexões de um monge budista (?) na televisão; a outra parte se passa numa loja Blockbuster, com o doce príncipe em meio a prateleiras da sessão de ação, uma ironia talvez forçada demais, porém - acredito - de certa felicidade, dentro de uma estrutura que busca reelaborar o conteúdo metalinguístico da peça; coerentemente, em se tratando de uma adaptação fílmica, Hamlet exibe, em sala particular, o seu filme The mousetrap. A cena em que Ofélia imagina se jogando numa piscina, de modo a prefigurar seu suicídio por afogamento, também acho bem-pensada, além de o acréscimento de conflitos algo misteriosos vividos pela personagem, mais valorizada do que acontece no original, ser interessante. Dois detalhes me chamaram bastante a atenção na película de Luhrmann: um, a porta espelhada, atrás da qual Polonius se esconde e onde é assassinado; outro, a do beijo de Hamlet na boca de Claudius, após aquele dizer a este que marido e mulher são uma mesma carne - tais detalhes parecem prestar homenagem à adaptação de Kenneth Branagh. Nada, porém, que o salve da ruindade e do não-vale-a-pena-ser-visto.

Romeo + Juliet, pelo contrário, até supera a água doce e morna que é o filme de Zeffirelli, produzido em 1968. Diga-se de passagem, definitivamente, o cineasta italiano não acertou o passo com o Bardo: seu Hamlet de 1990 está aquém até mesmo da versão soviética (1964), de Grigori Kozintsev. A cena inicial, no posto de gasolina, dá a dimensão perfeita do ódio de uma família pela outra; DiCaprio é um Romeu muito bem-construído, bem-dosado em sua melancolia, em sua exaltação de apaixonado correspondido, em sua tensão perante a iminência de acontecimentos trágicos... Se à Julieta de Claire Danes falta tempero, francamente, acho que se trata de característica do próprio personagem. Em suma, o Romeo + Juliet transcorrido na década de 1990 em Verona Beach dá a impressão de que a tragédia shakespeariana pode ocorrer em nossos dias, o que não consegue fazer o Hamlet da Nova Iorque do ano 2000 (não, o príncipe dinamarquês jamais admiraria Che Guevara... e estaria a léguas distante de ser um nietzschiano).

domingo, 24 de janeiro de 2010

Something is rotten in the state of humanity

Licínio dos Santos, em seu inquérito sobre A Loucura dos Intelectuais, entrevistou Augusto dos Anjos e à pergunta - "Quais os autores que mais o impressionaram" - obteve a seguinte resposta: "Shakespeare e Edgar Poe". O poeta paraibano, então, já havia publicado seu livro de poemas, Eu, obra personalíssima, como o próprio título sugere, dentro do panorama da poesia brasileira na época. Porém, a excentricidade de Eu é tanto menor quanto observamos os múltiplos influxos que permeiam seus versos, influxos oriundos de Charles Baudelaire, Carvalho Júnior, Antero de Quental, Cesário Verde, Cruz e Sousa - conjunto de autores no qual marcam presença a ideologia decadentista, a linguagem idiossincrática e o próprio rigor formal classicizante que caracterizam a poética de Augusto dos Anjos. Ao lado desses nomes, deve ser posto o de Shakespeare, naturalmente em razão de uma outra espécie de ressonância, mas não menos importante, senão até maior. Sim: o Bardo inglês não apenas impressionou o poeta brasileiro, conforme confessa no inquérito de Licínio dos Santos, como também o teria influenciado profundamente na concepção de seu grande livro. Poderíamos dizer mais: o Eu consiste num registro de reflexões hamletianas. Vejamos o porquê dessa afirmação.

Hamlet, após o tão célebre monólogo "To be or not to be", vem a travar um diálogo - desvairado no tom, mas muito razoável no conteúdo - com Ofélia. Nessa conversa, na qual o Príncipe procura teatralizar sua loucura, ele realiza um duro exame da condição humana, não deixando de utilizar-se a si mesmo como exemplo:


I am myself indifferent honest, but yet I could accuse me of such things that it were better my mother had not borne me. I am very proud, revengeful, ambitious, with more offences at my beck than I have thoughts to put them in, imagination to give them shape, or time to act them in.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.55.)


A inescapável baixeza moral do Homem, todavia, não terminaria com a morte; perpetuaria na degradação física, na continuidade existencial proporcionada pelo verme que devora os cadáveres. Na terceira cena do ato IV, após Hamlet matar Polônio, o Rei pergunta a Hamlet:


KING. Now, Hamlet, where's Polonnius?

HAM. At supper.

KING. At supper? Where?

HAM. Not where he eats, but where he is eaten. A certain convocation of politic worms are e'en at him. Your worm is your only emperor for diet. We fat all creatures else to fat us, and we fat ourselves for maggots. Your fat king and your lean beggar is but variable service, two dishes, but to one table. That's the end.

KING. Alas, alas!

HAM. A man many fish with the worm that hath eat of a king, and eat of the fish that hath fed of that worm.

KING. What dost thou mean by this?

HAM. Nothing but to show you how a king may go a progress through the guts of a beggar.

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.82.)


Assim como, na vida, a baixeza moral iguala príncipes e cortesãs, a degradação física iguala, na morte, reis e mendigos. De fato, nem reis nem os maiores imperadores da história fugiriam a essa condição. Eis a seguir trecho da cena que se passa no cemitério, onde o protagonista da tragédia, tendo na mão a caveira de Yorick, o antigo bobo, conjectura com Horácio:


HAM. [...] Prithee, Horatio, tell me one thing.

HOR. What's that, my lord?

HAM. Dost thou think Alexander looked o' this fashion i' the earth?

HOR. E'en so.

HAM. And smelt so? Pah! [Puts down the skull.

HOR. E'en so, my lord.

HAM. To what base uses we many return, Horatio! Why, many not imagination trace the noble dust of Alexander till he find it stopping a bung-hole?

HOR. 'Twere to consider too curiously to consider so.

HAM. No, faith, not a jot; but to follow him thither with modesty enough and likelihood to lead it, as thus: Alexander died, Alexander was buried, Alexander returneth into dust, the dust is earth, of earth we make loam, and why of that loam, whereto he was converted, might they not stop a beer-barrel?
Imperious Caesar, dead and turn'd to clay,
Might stop a hole to keep the wind away.
O, that that earth, which kept the world in awe,
Should patch a wall to expel the winter's flaw!

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.106.)


Comparemos esta última passagem de Hamlet com uma estrofe do "Poema Negro" de Eu, na qual, além da situação e da idéia, a ambiência nas duas obras se assemelha:


Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.286.)


Hamlet perante a caveira de Yorick e a personificação lírica do "Poema Negro" perante os cadáveres chegam à mesma conclusão do universal "Destino" (e por ser universal, temos a inicial maiúscula) dos seres humanos. Mas também no livro de Augusto dos Anjos, a podridão material se associa à podridão moral inerente à existência humana e mesmo a toda existência. Nas duas estrofes abaixo, aponta-se na própria Natureza, acusada de torturar aqueles a que ela confere vida, uma hediondez ética:


Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam...
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam!

Tu nãs és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.287.)


No soneto "O Morcego", Augusto dos Anjos metaforiza na imagem de feiúra amedrontadora desse bicho a (também com iniciais maiúsculas) "Consciência Humana", a qual, "Por mais que a gente faça, à noite, [...] entra / Imperceptivelmente em nosso quarto!" (ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.202.) Exame interior de resultados tão abjetos quanto o de Hamlet, que corrige Polônio, quando este afirma que irá acolher os atores recém-chegados conforme o merecimento deles: "God's bodykins, man, much better. Use every man after his desert, and who shall 'scape whipping?"

(SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Dover Publications, 1992. p.48.)


Se a condição degradada do Homem permanece, segundo Hamlet, após a morte no verme que se alimenta dos cadáveres ou na terra que os consome, como vimos nos excertos das cenas do diálogo de Hamlet com o Rei e do diálogo de Hamlet com Horácio no cemitério, outro soneto de Eu, "Eterna Mágoa", lança mão também da imagem do verme (tão cara, aliás, a Augusto dos Anjos) para afirmar a permanência de um certo aspecto da degradação moral humana:


O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.290.)


A exegese shakespeariana já observou que Hamlet, ainda que esteja em diálogo com outros personagens várias vezes, sua reclusão em si mesmo, que o deixa à parte no mundo, não se interrompe durante a peça. O ensimesmamento do protagonista expressa-se também na recorrência e na importância dos monólogos - recorrência e importância também evidentes em Eu, cujo poema de abertura, a propósito, chama-se "Monólogo de uma Sombra", além de um outro intitulado "Solilóquio de um Visionário". O fato é que o livro como um todo apresenta um caráter monologal, manifestação do isolamento absoluto da voz poética, aspecto já adiantado no próprio título dessa obra de Augusto dos Anjos. Essa solidão tanto de Hamlet quanto da voz poética augustiana não constitui a particularidade de um caso individual, mas a universalidade da condição humana; o Homem é um ser solitário, pois como haver uma efetiva comunicação afetiva entre moralmente degenerados? Eis abaixo transcritos os quartetos do contundente e recitadíssimo soneto "Versos Íntimos":


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável.

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.280.)


Em Eu, Hamlet aparece de uma outra maneira, além dessa que venho aqui destacando. Dois poemas contêm referências explícitas ao personagem shakespeariano. Tais referências endossam a universalidade do trágico Hamlet, cuja condição existencial é de todos os homens e, naturalmente, também do enunciador do livro do poeta paraibano."Os Doentes" traz esta estrofe:


Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.241.)


E leiamos esta outra de "Tristezas de um Quarto Minguante":


Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!

(ANJOS, Augusto dos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.302.)


Essa ligação íntima do único livro organizado e publicado por Augusto dos Anjos com a colossal tragédia de William Shakespeare aproxima o Eu da obra de Machado de Assis, autor que escreveu, com efeito, shakespearianamente. O ser humano como monstro moral está em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro... na verdade, está, com maior ou menor força, em toda a narrativa do Bruxo do Cosme Velho. Por isso, o poeta paraibano e o escritor carioca se irmanam um com o outro e se isolam no cenário literário brasileiro de meados do século XIX a início do XX, quando a ressonância do Bardo inglês, em outros autores brasileiros, não se faz tão expressivamente sentir.

Esboço de estudo comparativo: Hamlet e Werther

Acredito que se pode dizer que, de certa maneira, Hamlet é um Werther avant-le-personnage. Assim como os transtornos existenciais que impelem o protagonista goethiano ao suicídio não têm como causa, mas sim apenas como eficaz catalisador a impossibilidade amorosa entre ele e Carlotta, o mal-estar no mundo de Hamlet não é provocado pelo falecimento de seu pai, nem o apressado casamento de sua mãe viúva; esses fatos simplesmente aceleram um processo de conscientização de que a vida é necessária e inescapavelmente uma miséria para a humanidade. Ao que me parece, no entanto, a proximidade entre um e outro para por aqui. Haja vista, o que significa a idéia de suicídio em Werther, cuja alma é grande demais para caber na Terra e que anseia pelo Absoluto, alcançado no gesto fatal, x em Hamlet, cônscio de sua pequenez, de sua insignificância no mundo (compartilhada por toda a espécie humana), e por isso mesmo conclui que o matar-se seria uma atitude, como qualquer uma executada pelo homem, sem a mínima importância dentro da ordem das coisas. Muito sabiamente, Shakespeare não escreve "To live, or to die", porque a verdadeira questão, bem mais profunda e complexa, é de ser ou não ser.


No que se refere especificamente ao tema amoroso, Hamlet e Werther se aproximam na mesma medida em que se distanciam. Explico o aparente paradoxo. É que o personagem shakespeariano não ama Ofélia: seus sentimentos por ela decorrem de uma postura teatral assumida desde a eclosão da consciência de que o homem é essencialmente um ser miserável; por outro lado, o personagem goethiano ama, sim, a Carlota e este amor reproduz, talvez metonimicamente, seu amor pelas crianças, pela humanidade, pela natureza, pela arte - sempre correspondido aquém de suas necessidades existenciais, donde o salto suicida rumo ao Absoluto. Assim, para Hamlet como para Werther, o amor está subordinado a suas respectivas condições e concepções de vida - ou seja - nenhum dos dois seria propriamente um romântico. Essa conclusão, se é óbvia quanto ao protagonista da peça do dramaturgo elizabetano, pode parecer uma heresia exegética quanto ao protagonista do 'romance' do escritor alemão, uma vez que este, ao escrever Die Leiden des jungen Werther é um pré-romântico (o que, na verdade, reforça a diferença entre o pré-romantismo e o romantismo, chegando quase um a ser autônomo em relação ao outro). Penso isso porque o amor não transtorna, não modifica nada do ser de Hamlet e de Werther, como podemos ver, por exemplo, no Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, cujo protagonista Simão Botelho é um arruaceiro, valentão e transforma-se completamente, ao conhecer e apaixonar-se por Teresa de Albuquerque, ou também o Tristão do drama musical de R. Wagner.