sábado, 8 de maio de 2010

Shakespeare, o gênio original

Pedro Süssekind, atualmente professor adjunto da UFF, doutorou-se em Filosofia pela UFRJ, tendo realizado parte de sua pesquisa na Freie Universität de Berlim. O resultado desse doutorado em plagas filosóficas não poderia ter sido uma contribuição mais literária e foi publicado pela editora Jorge Zahar, em 2008, com o título Shakespeare, o gênio original. Nesse volume de menos de 150 páginas, o jovem autor carioca, nascido a 1973, considera a recepção do Bardo na Alemanha, num período importantíssimo para a filosofia e a literatura não só alemãs, mas também ocidentais: das últimas décadas do século XVIII até as três primeiras da centúria seguinte. Para termos uma ideia do significado cultural desse espaço de tempo, basta citar três nomes - Lessing, Schiller e Goethe -. O primeiro, autor da famosa reflexão sobre as diferenças entre a escultura (junto à pintura) e a poesia, a partir do exemplo da estátua de Laocoonte e do excerto da Eneida de Virgílio, em que se narra o trágico episódio da morte desse sacerdote troiano de Apolo, foi eminente crítico teatral, que empreendeu verdadeira campanha contra a obediência ao modelo dramático francês, pautado em interpretações rigorosamente normativas da Poética aristotélica. Lessing, também dramaturgo, autor da famosa peça Natã, o sábio, pertence à Aufklärung (o iluminismo alemão), antecedente à ruptura paradigmática realizada pelo sistema filosófico de Immanuel Kant, e anseava por caminhos mais adequados à expressão nacional do teatro produzido por escritores alemães. Ao modelo clássico de influência francesa, contrapunha a genialidade livre do inglês elisabetano William Shakespeare, cujas tragédias, muitas das vezes, não deixam de apresentar passagens cômicas, com personagens não apenas nobres, mas também do extrato popular... e tanto nesse gênero quanto nas comédias e nos dramas históricos desrespeitava quase sempre o poeta unidades de tempo e de espaço - ou seja - o Bardo era um bárbaro para a gramática dramatúrgica clássica francesa, muito influente na Alemanha. Ao fim e ao cabo, 'gênio' era o conceito-chave para o que pensava Lessing, e o foi também para a estética kantiana, e se tornou a divinização do artista pré-romântico, a exemplo de Goethe e Schiller (nas décadas de Sturm und Drang) e, a seguir, do artista romântico. O gênio, numa conceituação mais superficial e ampla possível, equiparava-se a Deus, no seu poder de criação ex-nihilo (do nada), liberto que está para não legitimar sua arte na conformidade com modelos e normas, como acontecia com os autores clássicos, que criavam, sem nunca perder de vista a ideia de imitatio: Camões, poeta clássico, jamais poderia ter escrito uma epopeia, se não tivesse observado a estrutura da Eneida, que por sua vez teve na Ilíada e na Odisseia de Homero os grandes modelos poéticos [vide nota abaixo].

Em Shakespeare, o gênio original, Süssekind discute a estética do gênio, a ideia de originalidade, tece um painel das concepções e dos procedimentos no classicismo, percorre textos críticos sobre teatro e sobre o poeta inglês de Lessing, Lenz, Herder, Schiller e Goethe, balizando com muita competência e clareza as diferenças entre o que cada um pensou, e até as modificações de pensamento referente ao assunto ao longos dos muitos anos vividos pelo eleito dos deuses e autor de Os sofrimentos do jovem Werther e Fausto. É um trabalho que clama por ser lido, pelo interesse analítico e histórico. Afinal, muito da responsabilidade de Shakespeare encontrar-se no cânone ocidental deve-se a esses alemães dos séculos XVIII-XIX.



NOTA: embora tido por gênio, dentro das características acima esclarecidas, William Shakespeare foi (não poderia ser diferente) um autor clássico. Mesmo que peças suas não respeitem, de fato, unidade de tempo e de espaço, assim como as fronteiras entre os gêneros trágico e cômico, a imitatio está presente em sua criação: o teatro do romano Plauto na estrutura dramática de A comédia dos erros, as narrativas renascentistas itálicas nos temas de Otelo e Romeu e Julieta e por aí vai.

6 comentários:

  1. Saudações!

    Há certas postagens sobre as quais não há comentários, bastando dizer que se aprende muito, simplesmente.

    Abraços,

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  2. Adriano,

    Confesso não ter buscado em seus arquivos algo que procuro conhecer da sua opinião:

    1. Se Hamlet teve contato com um espectro, por que diz em seu famoso monólogo que nenhum viajante voltou depois de morto? O Pai não teria então ido?
    2. Se Hamlet lança (e por que o faria) um questionamento sobre a sexualidade quando diz que nem homem nem mulher o apetece, e indaga, aos que o ouvem, o por que de rirem? (Isso tem algo com o antropocentrismo, como disse uma jovem no meu extinto Orkut?).
    3. O monólogo Ser ou Não Ser, versa, afinal, sobre o Suicídio?

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  3. Tranquilo, Richard. Vamos lá:

    1) Fiz a mesmíssima pergunta a um amigo bardólatra. A resposta não encontrei em nenhum texto dedicado a análises detalhadas da peça, aliás tampouco a pergunta formulada. Nossa conclusão, das duas uma: a) acidental incoerência da obra; e esta não seria a única em "Hamlet" ou b) isso serviria para fomentar mais dúvida acerca da existência ou não do Fantasma, uma das grandes polêmicas críticas em torno dessa peça.

    2) Acho plausível se entender a passagem como indício de homossexualidade por parte do personagem. Entretando, prefiro compreendê-la, tendo em vista que o referido trecho sucede à belíssima (e, de fato, antropocêntrica) definição do homem como obra-prima da natureza. No texto temos: "Man delights not me - no, nor woman neither, though by your smiling you seem to say so" ("o homem não me deleita - não, nem a mulher, apesar de teu sorriso parecer dizê-lo". Assim, Hamlet diria "homem" no sentido de ser humano, e, sendo este comparado a uma obra-de-arte, haveria referência a um deleite estético (não necessariamente sexual). E interpretando no sorriso de Rosencrantz a malícia do pensamento silenciado "mas uma mulher te deleita, né, danadinho!?", o Príncipe já retruca: "não, nem mesmo as mulheres, que são parte da humanidade, conseguiriam me tirar do estado melancólico no qual me encontro".

    3) Sim, versa sobre o suicídio. Já no primeiro monólogo Hamlet fala de sua vontade de se matar, não o fazendo pela proibição divina. No entanto, a escolha das palavras "To be or not to be" (e não 'to live or to die' - viver ou morrer) nos conduz a uma camada de sentido mais profunda. 'Ser' como aceitar a existência, vivendo-a em plenitude - o que deixou o Príncipe de fazer, desde a morte do pai - ou seja, ele está 'não sendo'. E sua dúvida permanece, contudo, entre uma e outra postura - dúvida que se universaliza para toda a humanidade. A propósito, Vigotski, em livro que resenhei neste blog, considera que Hamlet, principalmente após a visão e o diálogo com o fantasma do pai, encontra-se numa zona intermediária entre a vida e a morte.

    É isso. São as minhas respostas, Richard. Naturalmente, pessoas muito mais conhecedoras de Shakespeare te darão outras e melhores.

    Grande abraço!! E obrigado sempre pelas visitas!!

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  4. Adriano,

    Seus comentários são muito interessantes, e não duvido que você conheça o suficiente para emitir opinião que me satisfaça. Obrigado por responder.

    Abraços

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  5. ...
    A propósito.
    Estou relendo o comentário de H. Bloom em "Shakespeare - a invenção do humano" sobre Hamlet. Às vezes ele me parece mais um apologista que propriamente um crítico. Claro, opinião de leitor descomprometido... rs

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  6. Olha, como você sabe, Harold Bloom é um dos maiores especialistas de Shakespeare do mundo, expõe sacadas interpretativas muito refinadas e empolgantes, mas... tem esse grave defeito como crítico: leva ao pé da letra o ser bardólatra. Principalmente quando comenta "Hamlet". Por exemplo, a tal da automonia desse personagem frente às vontades do próprio autor é difícil de engolir... e que o príncipe dinamarquês é mais inteligente do que seu criador... Você tem toda a razão: coisas de apologista, não de um crítico.

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